Tabula Rasa

quarta-feira, 26 de maio de 2010
Postado por Wellington Sayeg - originalmente em www.humanodepano.blogspot.com





Como alguns sabem, começei a pouco tempo um estágio no setor educacional público de minha cidade. É um trabalho um tanto desafiador, pois permaneço sempre com crianças de, em geral, cinco anos ou menos, onde poucas tem uma estrutura familiar suficientemente boa como apoio, e isso gera conflitos pessoais em indivíduos tão pequenos, e quando digo conflitos pessoais, digo, realmente, conflitos visíveis a qualquer um que se habilite a conviver, nem que seja apenas algumas horas, na presença deles.
Acredito que essa experiência com crianças era algo que me faltava, e isso com certeza me trará (apesar da exaustão que isso, em geral, causa) bons frutos na minha carreira profissional, mesmo que minha área de interesse dentro da psicologia não seja, exatamente, a psicopedagogia, nem nada relacionado com as crianças, em geral. Mas enfim, isso não vem ao caso.

Estar novamente presente no sistema de ensino infantil me fez lembrar que, a mais ou menos quatorze anos, eu é quem estava lá, presente. O sistema de ensinamento e aprendizagem praticamente continua o mesmo que vi em minha época, com poucas, realmente poucas diferenças notáveis.
Isso me fez refletir o que acontece com o sistema educacional em plano nacional, e por que, apesar de que a educação ser uma área governamental muito bem comentada, e que planos e planos são feitos por lideres políticos para melhorar a qualidade da mesma, ela ainda assim vem apresentando, ano após ano, críticas de todos os tipos e tamanhos.

O título do texto se chama "tabula rasa", em latim, significa "folha em branco". É uma citação da filosofia empirista, que vem muito a calhar com o que pretendo expor.

A filosofia empirista consiste em acreditar, basicamente, que todo o conhecimento que o ser humano adquire, através dos anos de vida, são mediantes a sua experiência com o objeto externo, não existe conhecimento nativo, nada que você carregue dentro de você, e que traga desde o ventre da mãe. Isso limita o ser humano a nascer sem nenhum tipo de conhecimento, nenhum tipo de impressão ou simbolo. O conhecimento é gerado conforme vamos convivendo e aprendendo, recolhendo informações de qualquer coisa que faça parte do nosso ciclo de vida.

John Locke foi um dos principais representantes da corrente filosófica empirista. Ele descreve o conceito de tabula rasa como representante de como todo o ser humano nasce. Raso, vazio, pronto para receber as informações que, a partir dai, construirão seu conhecer a cerca do mundo.

Na teoria psicanalítica, assim que o bebê nasce, ele começaria a procurar por símbolos para satisfazer suas necessidades. Poderíamos, bem resumidamente, incluir os chamados "arquétipos", da psicologia analítica, descritos por Carl Jung. Mas afinal, o que isso tem haver com a educação ?

A principal função da escola, em opinião própria, seria a individualização do aluno perante a sociedade, criando assim uma mediação entre a criança que ainda se contenta, psicologicamente, de símbolos que criou em vínculos de pessoas próximas, como pai, mãe, madrasta, etc, a deixar tudo isso como uma fase que já tenha sido ultrapassada, e a criar laços firmes com a sociedade. A escola, em suma, prepara a criança para o convívio social.
É obrigação da escola transmitir cultura, saber, conhecer, no geral, "humanizar" aquele pequeno individuo, para que possa aceitar e ser aceito nas condições gerais que, no futuro, uma socialização necessária o obrigará.

Logo, a criança vai deixando de lado a imitação que exerce de adultos próximos, e vai, com a ajuda do instituto de ensino, criando uma autonomia própria, autonomia essa que vira a ser a base de sua atitude como cidadão.
Isso coloca a escola no patamar de principal instituição social que os indivíduos tendem a participar. É com a ajuda dela que nos tornamos e reafirmamos como humanos, desenvolvendo as capacidades e intuitos que nos são impostos assim que nascemos.

Mas se a escola é a principal (e, quando não se tem uma base familiar preparada para lhe dar com esse tipo de situação, talvez a única) mediadora entre a criança e a sociedade que lhe espera, por que a escola age numa realidade paralela ao que a criança encontra dos portões pra fora ?
Digo, a realidade da escola, que deveria ser preparatória para a realidade social, e no mesmo contexto, pessoal, acaba se tornando um desvio, que tenta, desesperadamente, fechar os olhos dos pequenos indivíduos para a realidade em que, em breve, estarão adentrando. Isso gera um desvio de realidade, onde a escola, ao invés de levar seus alunos a participar ativamente de um contexto social, se tornou nada mais que um paradoxo: Uma instituição social que se enxerga completamente fora dos padrões sociais. Nesse ponto padrão, a utopia do erro está formada: Cria-se a ideia de que, é possível preparar o indivíduo para viver no cotidiano social, estando ele completamente isolado desse cotidiano padrão.

Logo, a prisão em que os alunos se sentem, acaba sendo esclarecida: O plano educacional abafa a realidade social, criando regras e preceitos educacionais muito distantes das regras e preceitos que a sociedade impõe. A tentativa é de sacrificar o quesito social para a sobrevivência do quesito institucional escolar. Os alunos se veem longe de sua individualidade, quando adentram numa escola onde se tornam iguais a cada um ali presente. Sua identidade e história fica do portão para fora. Os uniformes tornam todos iguais, e a autoridade da escola é completamente inquestionável, afogando assim, a oportunidade do aluno de criar questionamentos que não sejam dentro das matérias estudantis.

A tentativa frustrada disso tudo acaba sendo exibida como fracasso total, quando vemos a realidade social entrando na escola através de alunos que, num ato de "rebeldia", acabam exercendo e mostrando o que eles realmente são, além de um uniforme branco com o nome de um professor falecido. Algum modo de expressar a individualidade, eles encontram, e esse modo normalmente infringe regulamentos que a diretoria impõe, como uma eterna verdade absoluta.

A história se repete, o erro se repete, até sairmos do ensino fundamental. O ensino médio continua contaminado pelo mesmo desdém. O sistema educacional adquire, em cada novo aluno, um tabula rasa, para enche-los de regras e preceitos inválidos para o convívio social, que, dia mais, dia menos, eles vomitarão tudo numa explosão de rebeldia. E a guerra entre alunos x professores acontece, diariamente, até que o sistema de ensino seja concluído. E o que encontramos nessa conclusão ?
Indivíduos sem base social nenhuma, que aceitam o poder total da política, sem implicar com regras que não concordam ou fingindo não enxergar problemas que estão diante de seus olhos.
Esse retardo é bem firmado quando vemos os resultados de eleições para cargos públicos, ou o modo como se portam diante de um jogo de futebol, ou quando explodem de ignorância e restrições, e eclodem num confronto com a polícia.

Enquanto Nietzsche pregava a morte de deus, Foucault pregava a morte do homem. A morte desse homem, o conformado, o igual, o cego. Esse homem que vive sua vida inteira preso a cordas de um eterno marionete.


Gostaria de terminar com a reflexão de uma frase de Paulo Freire, que dá uma resposta obvia pra esse tipo de problema:

"Uma das condições necessárias para que nos tornemos um intelectual que não teme a mudança é a percepção e a aceitação de que não há vida na imobilidade. De que não há progresso na estagnação".

1 comentários:

Psicologia Unilago disse...

Da mesma forma que comentei lá. Comento aqui, enfim é a mesma coisa D:
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A guisa de reflexão questiono – o que é ser edificante?
Seria o espírito de Servir posto à prova com as nossas limitações?

O exemplo a que me refiro neste caso é a carta escrita pelo filósofo espanhol José Ortega Y Gasset a seu discípulo, também filósofo e madrilenho, Julian Marias, no momento da transmissão da liderança da Escola de Madrid.

É extraordinária e merece a nossa reflexão.

“O grande drama da vida talvez esteja em sua própria construção, naquilo que devemos fazer com ela, como o grito desesperado de São Paulo ao pronunciar ‘o homem tem que ser edificante’, cruel exigência ou maravilhoso favor. Nessa edificação ganha a imaginação a princípio. Mas só a princípio, já que ao efetivar-se o sonho, perdemos parte dessa grande mãe criativa, que tantas vezes se oculta na realidade que o mundo insiste em chamar de verdade.

Construímo-nos exatamente como o novelista constrói seus personagens. Somos novelistas de nós mesmos e se não o fôssemos, jamais poderíamos entender qualquer obra literária ou poética. Quem não percebe o autor de sua vida, não aprecia a arte que lhe inspira e nem admira a natureza que o espelha.

O lamentável é que, na maioria das vezes, cumpre-nos eleger um só e único caminho dentre os muitos que poderão chegar e atender aos apelos da vocação. São programas de vida e, não necessariamente, o projeto vital. Passam na fantasia mas nem sempre refletem o desejo. Ao escolher alguns, excluímos os demais, onde poderá haver justamente o ponto central. Pode acontecer, e geralmente acontece, que a multiplicidade dos dotes desoriente e perturbe o projeto vital, o chamamento sagrado do fogo interior. Como Goethe que viveu inseguro do seu Eu, do seu desejo, devido à natural exuberância de suas aptidões.

Quantos mais eu vi assim. Tamanha aptidão em confronto com uma vontade duvidosa! E uma vida de tal forma ambígua, flutuando ao sabor do acaso, sem maior determinação interna, torna-se vida em disponibilidade. Goethe queria permanecer eternamente em disponibilidade. Difícil questão: até que linha divisória a disponibilidade é o livre ser, a passagem para o novo, e até que ponto torna-se desperdício:

Tudo indica que Fernando Pessoa, esse grande entre os maiores, tenha sido um caso análogo. A multiplicação de suas vidas possíveis desorientou e perturbou o rumo de seus passos, para o que poderia vir a ser sua vida real, exclusiva, vocacional. Mergulhou por suas próprias palavras e, “progressiva e irreversível disponibilidade”. No vazio da disponibilidade, que fez de toda a sua existência a busca interminável e sempre frustrada da “identidade perdida”. Ou será essa identidade perdida que tira o homem do comum, desse diário ofuscante que preenche falsamente o impreenchível. É a dúvida dos libertos de pensamento, dos que possuem a saudável angústia da tragédia e a visão do paraíso dessa monumental condição humana.

Aqui, neste momento, Julian, penso se estou disponível, se sempre estive e tremo de pavor ao questionar se a disponibilidade já não cabe num homem tão envolvido! Enfim, se me fiz ou se me perdi. Neste inverno madrilenho, ao final da vida, é o meu drama e meu encanto. Ter Goethe e Pessoa como fantasmas e santos do meu sonho e do meu dia”.

Temos todos que vivemos,
Uma vida que é vivida,
E outra vida que é pensada,
E a única que realmente temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada...

Fernando Pessoa

É admirável e contentador reconhecer que há quem pense o mundo e o faz de forma tão especial e profunda.
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(Rafael Annovazzi)

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