Considerações Pessoais sobre "Sermos Edificantes"

quarta-feira, 4 de agosto de 2010
A guisa de reflexão questiono – o que é ser edificante?


Seria o espírito de Servir posto à prova com as nossas limitações?



O exemplo a que me refiro neste caso é a carta escrita pelo filósofo espanhol José Ortega Y Gasset a seu discípulo, também filósofo e madrilenho, Julian Marias, no momento da transmissão da liderança da Escola de Madrid.



É extraordinária e merece a nossa reflexão.

“O grande drama da vida talvez esteja em sua própria construção, naquilo que devemos fazer com ela, como o grito desesperado de São Paulo ao pronunciar ‘o homem tem que ser edificante’, cruel exigência ou maravilhoso favor. Nessa edificação ganha a imaginação a princípio. Mas só a princípio, já que ao efetivar-se o sonho, perdemos parte dessa grande mãe criativa, que tantas vezes se oculta na realidade que o mundo insiste em chamar de verdade.

Construímo-nos exatamente como o novelista constrói seus personagens. Somos novelistas de nós mesmos e se não o fôssemos, jamais poderíamos entender qualquer obra literária ou poética. Quem não percebe o autor de sua vida, não aprecia a arte que lhe inspira e nem admira a natureza que o espelha.


O lamentável é que, na maioria das vezes, cumpre-nos eleger um só e único caminho dentre os muitos que poderão chegar e atender aos apelos da vocação. São programas de vida e, não necessariamente, o projeto vital. Passam na fantasia mas nem sempre refletem o desejo. Ao escolher alguns, excluímos os demais, onde poderá haver justamente o ponto central. Pode acontecer, e geralmente acontece, que a multiplicidade dos dotes desoriente e perturbe o projeto vital, o chamamento sagrado do fogo interior. Como Goethe que viveu inseguro do seu Eu, do seu desejo, devido à natural exuberância de suas aptidões.


Quantos mais eu vi assim. Tamanha aptidão em confronto com uma vontade duvidosa! E uma vida de tal forma ambígua, flutuando ao sabor do acaso, sem maior determinação interna, torna-se vida em disponibilidade. Goethe queria permanecer eternamente em disponibilidade. Difícil questão: até que linha divisória a disponibilidade é o livre ser, a passagem para o novo, e até que ponto torna-se desperdício:


Tudo indica que Fernando Pessoa, esse grande entre os maiores, tenha sido um caso análogo. A multiplicação de suas vidas possíveis desorientou e perturbou o rumo de seus passos, para o que poderia vir a ser sua vida real, exclusiva, vocacional. Mergulhou por suas próprias palavras e, “progressiva e irreversível disponibilidade”. No vazio da disponibilidade, que fez de toda a sua existência a busca interminável e sempre frustrada da “identidade perdida”. Ou será essa identidade perdida que tira o homem do comum, desse diário ofuscante que preenche falsamente o impreenchível. É a dúvida dos libertos de pensamento, dos que possuem a saudável angústia da tragédia e a visão do paraíso dessa monumental condição humana.



Aqui, neste momento, Julian, penso se estou disponível, se sempre estive e tremo de pavor ao questionar se a disponibilidade já não cabe num homem tão envolvido! Enfim, se me fiz ou se me perdi. Neste inverno madrilenho, ao final da vida, é o meu drama e meu encanto. Ter Goethe e Pessoa como fantasmas e santos do meu sonho e do meu dia”.



Temos todos que vivemos,

Uma vida que é vivida,

E outra vida que é pensada,

E a única que realmente temos

É essa que é dividida

Entre a verdadeira e a errada...



Fernando Pessoa



É admirável e contentador reconhecer que há quem pense o mundo e o faz de forma tão especial e profunda.





Possíveis abordagens do comportamento humano - Teoria do Caos

terça-feira, 3 de agosto de 2010
Esta obra procura enfocar o processo constitutivo da personalidade segundo a teoria de Carl Rogers - Abordagem Centrada na Pessoa, e relacioná-la à Teoria do Caos na leitura de Ilya Prigogine. O processo constitutivo do funcionamento do ser humano, que compõe a personalidade, na abordagem Centrada na Pessoa, serve de base para a compreensão dita humanista.
                                                                      
CURIOSIDADES:                                             

Introdução

O termo caos, assim traduzido para o português, é originado da palavra grega “cháos", que significa vasto abismo ou fenda. É utilizada também como "origem" ou "abertura originária de onde vem tudo", aludindo ao estado de matéria sem forma e espaço infinito que existia antes do universo ordenado, suposto por visões cosmológico-religiosas. Através dos romanos, passou a ter a conotação de desordem, contrariamente ao “kósmos” ou ordem.

Nosso vernáculo incorporou seu sentido mais usual como uma idéia de desordem, confusão.
O caos pode ser definido como sendo um processo complexo – qualitativo e não linear – caracterizado pela aparente imprevisibilidade de comportamento e pela grande sensibilidade a pequenas variações nas condições iniciais de um sistema dinâmico.

A maior parte dos fenômenos naturais são caóticos, assim como alguns feitos pelo homem. O mar é um sistema caótico dirigido por uma quantidade finita de entradas (vento, sol, massa da terra etc.), resultando em ondas que podem ser previstas no geral, mas muito difícil de se prever detalhadamente. Exemplo de fenômeno natural caótico feito pelo homem é o mercado financeiro mundial que por fora parece aleatório e imprevisível, mas cada decisão é totalmente consciente e nada aleatória. Com os países interligados pela Internet, formando um único mercado global governado por transferências instantâneas de capital, pequenas oscilações localizadas podem se propagar rapidamente pelos meios eletrônicos e causar sérias perturbações na economia mundial.

Esse é o comportamento dos sistemas não-lineares, sistemas extremamente sensíveis às condições iniciais, em que pequeníssimas alterações nas causas provocam extremas variações nos efeitos. A maior parte das organizações (biológicas ou sociais) tem um comportamento não-linear; são sistemas dinâmicos.

É nesse contexto que se encontra a Polícia Militar, instituição sesquicentenária, composta por vários integrantes alocados numa série de cargos e funções, inseridos numa estrutura complexa de comandos autônomos ou semi-autônomos, interligados a um comando central, regidos por algumas normas desatualizadas, lidando com situações as mais diversas da vida dos cidadãos, incluídos neste conceito o próprio público interno. Resistindo às mudanças ao invés de absorvê-las para evoluir, essa organização sobrevive em constante estado de desequilíbrio.  
1. A Teoria do Caos
Desde o século XVI a ciência moderna ocidental começou a ser moldada a partir dos trabalhos de Copérnico, Galileu, Kepler, Francis Bacon e Descartes, fazendo surgir uma visão mecanicista, através da criação do método científico. O chamado racionalismo científico foi legitimado por Isaac Newton, que através de suas leis do movimento, criou uma realidade determinista governada por leis físicas e matemáticas, onde tudo era certo, absoluto e imutável. O funcionamento do mundo passou a ser visto como o de um relógio, através de movimentos lineares e precisos.

No final do Século XIX Henri Poincaré desafiou pela primeira vez esta visão determinista dos sistemas, ao estudar o comportamento de três corpos celestes, descrito por um sistema de equações diferenciais resultantes das Leis de Newton. O matemático francês encontrou resultados estranhos: o sistema era impossível de resolver. Restava-lhe analisar a sua evolução ao longo do tempo. Foi então que Poincaré desvendou os comportamentos irregulares, não-periódicos e imprevisíveis deste sistema, numa palavra: caóticos. Estava aberta a porta dos sistemas dinâmicos não-lineares.

No início dos anos 60 o matemático Edward Lorenz, recorrendo a um modelo de equações diferenciais, imprimiu uma série de números representando temperatura, a evolução da pressão, velocidade e direção do vento, tentando simular o clima no seu computador. Ao voltar a examinar uma série de dados, reintroduzindo os valores impressos, constatou que a nova seqüência de dados se afastava muito rapidamente daquela que tinha obtido antes. Os resultados eram completamente diferentes porque impressos com menos três casas decimais do que eram calculados.

No final dos anos 80 Mitchell Waldrop, pesquisador do laboratório norte-americano de física nuclear de Los Alamos, apresentou um programa de computador no qual objetos simulavam o comportamento de um bando de pássaros. O vôo dos pássaros em bando sempre foi um mistério por ter um padrão variante e complexo de comportamento. Na tela do computador foram distribuídos randomicamente objetos, que a partir de cada ponto se reuniam para formar um bando, exatamente como na vida real. Eles se juntavam, se afastavam e se reuniam novamente em formações que se alteravam constantemente, sem que houvesse instrução no software que informasse como deveriam se comportar coletivamente, tendo sido programados individualmente com apenas três regras simples: manter um mínimo de distância um do outro, tentar voar à mesma velocidade e tomar a dianteira quando estivessem em grande concentração.

Essas três regras podem ser consideradas os atratores, ou seja, o subconjunto do espaço de fase de sistemas dissipativos para a qual tendem as trajetórias que partem de determinada região. 

Segundo Stacey apud Paiva (2001, p. 1), ‘... o Caos não significa desordem absoluta ou perda completa de forma, mas que sistemas guiados por certos tipos de leis perfeitamente ordenadas são capazes de se comportar de maneira aleatória e, desta forma, completamente imprevisível no longo prazo, em um nível específico’.
Esta é a Teoria do Caos: há ordem na desordem e desordem na ordem.
2. A era caórdica

Dee Hock, fundador e CEO Emérito da VISA International, em livro de sua autoria intitulado Birth of the Chaordic Age (traduzido no Brasil como: Nascimento da Era Caórdica), argumenta que o sucesso da Visa (22 mil bancos como membros, 750 milhões de clientes e 1,25 trilhões em transações anuais) advém de sua estrutura "caórdica".

Caórdica é entendida como uma combinação de duas palavras: caos e ordem. Hock criou o termo para descrever qualquer organização, sistema ou empresa que seja auto-organizado, autogovernado, adaptável, não-linear, complexo e que combine harmoniosamente tanto as características do caos quanto as da ordem.

O “Nascimento da Era Caórdica” é a fascinante história da criação da VISA e de como pessoas e instituições de todas as línguas, culturas, sistemas monetários, raças e tendências econômicas e políticas se juntaram numa organização não acionária, com fins lucrativos, de um trilhão e duzentos e cinqüenta bilhões de dólares, na qual os membros/proprietários interagem na mais intensa cooperação e na mais feroz competição.

Em seu núcleo, a VISA é caórdica. Enquanto outras empresas de cartão de crédito são propriedade de uma empresa ou alguns bancos, aquela organização é controlada pelos milhares de bancos que também são seus clientes. Todos esses bancos cooperam simultaneamente (honrando cartões emitidos por outros bancos e mantendo o sistema VISA de câmbio) e também competem entre si (oferecendo taxas e anuidades diferentes, por exemplo). O segredo do sucesso é essa mistura de ordem e caos.
3. Aplicabilidade da Teoria do Caos na Polícia Militar

Durante um evento científico ocorrido em Washington D. C. em 1972, Lorenz apresentou um artigo intitulado “Previsibilidade: o bater de asas de uma borboleta no Brasil desencadeia um tornado no Texas?”, criando a metáfora que ficou conhecida como “Efeito Borboleta”, traduzida na idéia de que pequenas causas podem provocar grandes efeitos, independentes do espaço e do tempo.

Especialistas ligados às ciências humanas, entretanto, identificam a influência do caos em revoluções políticas, em transformações econômicas e na modificação de costumes e regras morais, alertando para o fato de que o grito entusiasmado de um desconhecido na multidão, disparado no milésimo de segundo apropriado, pode ser o último e vital elemento necessário à deflagração de um conflito armado, ou mesmo que a foto de uma artista nua, ou de um simples beijo, pode detonar irreversíveis processos de alteração na maneira de um povo conceber o sexo e a intimidade.

Adaptando-se as leis da Teoria do Caos à Polícia Militar, podemos afirmar que esta é uma organização caórdica, pela complexidade das diversas ações desempenhadas por seus integrantes, traduzidas pela imprevisibilidade dos comportamentos individuais durante as atividades de policiamento ostensivo, onde a interação entre os policiais e entre estes e a população geram dinâmicas complexas, com sérios reflexos na eficiência e eficácia do serviço prestado. Uma ação ou reação incorreta de um policial, ainda que considerada de pouca expressão, poderá gerar grandes desgastes para a imagem institucional, trazendo como conseqüência, dentre outras, o descrédito da população e a diminuição da auto-estima de seus integrantes. Ao tentar fazer previsões sobre a realidade, procurando fazer o sistema estável, a Organização Policial tem reduzido o comportamento humano a modelos simplistas, culpando o ambiente por suas falhas. O planejamento da gestão de pessoas e dos recursos financeiros e materiais, quando realizado, é feito para longos períodos (normalmente o tempo de um governo), esquecendo-se que de um ano para outro podem ocorrer mudanças no cenário previsto.

A busca pelo pensamento único, determinista e linear, como doutrina, não permite que a diversidade de opiniões e abordagens crie novas visões para o enfrentamento dos problemas. Na instituição policial a hierarquia exarcebada impede que policiais de menor grau hierárquico opinem sobre determinados assuntos, apesar de se exigir deles um maior discernimento no desempenho de suas atividades. O nível universitário dos policiais presta-se muito mais como argumento de marketing do que como forma de aproveitamento do homem. Para a Teoria do Caos, o foco deve estar na criação de informação e não no seu processamento, gerindo a capacidade de mudar, em vez de gerenciar as mudanças.

Segundo Ralph Stacey, professor de Administração da Hertford Business School e autor de estudos sobre administração e teoria do caos, sistemas orgânicos complexos como sociedades são adaptativos e “as regras mudam à luz das conseqüências do comportamento que elas produzem.”

Como deve agir o policial com relação a certos comportamentos previstos como contravenção há mais de cinco décadas e que atualmente já são socialmente aceitos? Como atuar em situações de crise se em seu nível hierárquico foi-lhe ensinado muito pouco sobre o comportamento (não-linear) humano e ele e os reféns precisam aguardar os “poucos e privilegiados conhecedores” do assunto? E como se comportar diante de uma discussão entre vizinhos onde sua presença foi solicitada? E se também ele estiver com problemas emocionais, haverá como contê-lo?

As pessoas que formam as organizações não são autômatos regulados por leis simples.
O ensino precisa ser melhorado pela qualidade dos instrutores, pela adequada metodologia a ser aplicada e pela atualização curricular dos cursos de formação e aperfeiçoamento ministrados nos estabelecimentos de ensino, abordando assuntos de inegável importância e aplicabilidade teórico-prática, principalmente àqueles que têm mais tempo em contato com a população: Soldados e Graduados. O processo ensino-aprendizagem deve provocar a incerteza, por meio da problematização, para instigar o homem a pensar para agir, ao invés de agir sem pensar. A filosofia de polícia interativa e o Programa de Erradicação da Drogas (PROERD) nas escolas são estratégias que precisam ser implementadas de forma mais agressiva, suplementadas por outras atividades que permitam interagir com a sociedade, a ponto de atuarmos como e onde ela mais anseia.

Nunes (2003, p. 9), observa que: “À luz da Teoria do Caos os líderes são atratores caóticos (essenciais) que põem a ordem no caos” e ainda “Os próprios processos e as mudanças são atratores.” Por este raciocínio, verificamos a necessidade de capacitar o efetivo policial, em todos os níveis, com as mais modernas técnicas de liderança, como elemento facilitador, para um maior aproveitamento do êxito no trabalho cotidiano. As mudanças na Organização servirão para estimular seus integrantes, na medida em que estes forem informados sobre elas, objetivando o envolvimento de todos no processo.

Acreditando ser um sistema em equilíbrio, a Polícia Militar tem resistido a grandes mudanças, inviabilizando projetos de desenvolvimento organizacional. É necessário entender que, assim como no mundo físico, onde, para movimentar um corpo em repouso, é necessária a aplicação de uma grande quantidade de energia, o mesmo pode ser constatado para sistemas sociais. A resistência às mudanças tem gerado uma certa estagnação, além de insatisfação, estas por vezes traduzidas em inúmeras ações judiciais impetradas com o intuito de obter promoções, preteridas por uma legislação ultrapassada que permite casuísmos. Apesar do dilema entre reduzir ou não os níveis hierárquicos, o tema ainda não foi discutido de forma mais ampla, havendo uma incompreensível morosidade da Corporação para sanar esse problema. O cliente interno insatisfeito presta um mau serviço e deixa insatisfeito o cliente externo.
Conclusão

O conceito básico da Teoria do Caos é a impossibilidade de se fazer previsões de longo prazo em sistemas dinâmicos (não-lineares), haja vista que estes são sensíveis às suas condições iniciais. Além disso, ela propõe a possibilidade de reconhecer padrões similares num número infinito de estados futuros, permitindo melhor análise da realidade, fazendo com que o gestor entenda de forma diferente o que se passa com sua organização, dando-lhe condições para agir corretamente.

É verdade que o futuro em curto prazo pode ser previsível e que requer formas racionais e analíticas de controle; entretanto o futuro em longo prazo é desconhecido e completamente imprevisível, tornando os modelos de planejamento de períodos muito longos de pouco valor.

As Polícias Militares estão enfrentando um ambiente instável de mudanças na sociedade, com reflexos internos, e precisam estudar os conceitos da Teoria do Caos, visando sua aplicabilidade, para interagir com o meio interno e externo, procurando comportar-se de maneira aberta e sensível ao seu meio ambiente.

Pequenas mudanças nas condições iniciais de trabalho do policiamento podem levar a grandes mudanças no resultado esperado. Esta dependência às condições iniciais significa que erros na interpretação de dados, não importa quão pequeno sejam, são extremamente importantes e não podem ser desprezados. O planejamento necessita ser realizado através do estudo do ambiente externo e de seus diversos cenários, levando em consideração as tendências do período e não para prazos muito longos.   

A sugestão para lidar com essa nova realidade é ter um comportamento criativo e inovador em vez de reativo ou pró-ativo, procurando desenvolver e usar novos padrões para o emprego futuro da Corporação, renovando os referenciais de pensamento e interpretação da realidade, pela mudança dos paradigmas.
Bibliografia
BASTOS, Núbia M. Garcia. Introdução à metodologia do trabalho acadêmico. Fortaleza: [S.n.], 2003.
CAPRA, Fritjof. A Teia da Vida. São Paulo: Cultrix, 1999.
CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede: a era da informação: economia, sociedade e cultura. v. 1. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
________. Fim de Milênio (A era da informação: economia, sociedade e cultura. v. 3. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
GUATTARI, Felix. Caosmose, um novo paradigma estético. São Paulo: Editora 34, 2000.
HOCK, Dee, Organização Caórdica, Copyright Amana, 2000.
________. O nascimento da era caórdica. Tradução por Carlos Salum e Ana Lúcia Franco. São Paulo: Cultrix, 2000.
MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita; repensar a reforma e reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
NUNES, Renato Pinheiro. Teoria da complexidade aplicada às organizações. Apostila da Academia de Polícia Militar General Edgard Facó, janeiro, 2003.
OLIVEIRA, Luiz Alberto. Caos, acaso e tempo. In: NOVAES, Adauto (org) A crise da razão. São Paulo: MINC – Funarte, Companhia das Letras, 1999.
PAIVA, Wagner Peixoto de. A teoria do caos e as organizações. Caderno de Pesquisas em Administração. São Paulo: [S.n.], v. 8, n. 2, abr/jun. 2001.
STACEY, Ralph D. The chaos frontier: creative strategic control for business. Oxford: Butterworth Heinmann, 1991.


* O Coronel SOBRINHO possui o Curso Superior de Polícia e é aluno do curso de Administração, na Universidade Federal de Sergipe.
                                                            

Se você soubesse antes o que sabe agora, faria tudo novamente igual ?!

sábado, 31 de julho de 2010
http://www.youtube.com/watch?v=D2-x9GzURu8

Surfando Karmas & DNA

Engenheiros do Hawaii

Composição: Humberto Gessinger
Quantas vezes eu estive
Cara a cara com a pior metade?
A lembrança no espelho,
A esperança na outra margem
Quantas vezes a gente sobrevive
À hora da verdade?
Na falta de algo melhor
Nunca me faltou coragem
Se eu soubesse antes o que sei agora
Erraria tudo exatamente igual...
Tenho vivido um dia por semana
Acaba a grana, mês ainda tem
Sem passado nem futuro,
Eu vivo um dia de cada vez
Quantas vezes eu estive
Cara a cara com a pior metade?
Quantas vezes a gente sobrevive
À hora da verdade?
Se eu soubesse antes o que sei agora
Iria embora antes do final...
Surfando karmas e dna
Eu não quero ter o que eu não tenho
Não tenho medo de errar!
Surfando karmas e dna
Não quero ser o que eu não sou
Eu não sou maior que o mar...
Na falta do que fazer, inventei a minha liberdade!!
Surfando karmas e dna
Ô...ô ô

O Empirismo - Francis Bacon

 "SE O HOMEM COMEÇAR COM CERTEZAS, VAI ACABAR COM DÚVIDAS; MAS SE ELE SE CONTENTAR EM COMEÇAR COM DÚVIDAS, VAI ACABAR COM CERTEZAS"

O iniciador do empirismo é Francis Bacon. Enalteceu ele a experiência e o método dedutivo de tal modo, que o transcendente e a razão acabam por desaparecer na sombra. Falta-lhe, no entanto, a consciência crítica do empirismo, que foram aos poucos conquistando os seus sucessores e discípulos até Hume. Ademais, Bacon continua afirmando - mais ou menos logicamente - o mundo transcendente e cristão; antes, continua a considerar a filosofia como esclarecedora da essência da realidade, das formas, sustentáculo e causa dos fenômenos sensíveis. É uma posição filosófica que apela para a metafísica tradicional, grega e escolástica, aristotélica e tomista. Entretanto, acontece em Bacon o que aconteceu a muitos pensadores da Renascença, e o que acontecerá a muitos outros pensadores do empirismo e do racionalismo: isto é, a metafísica tradicional persiste neles todos histórica e praticamente ao lado da nova filosofia, tanto mais quanto esta é menos elaborada, acabada e consciente de si mesma.

Vida e Obras

Francis Bacon nasceu no dia 22 de janeiro de 1561 na York House, Londres, residência de seu pai sir Nicholas Bacon, que nos primeiros vinte anos do reinado de Elizabeth tinha sido o Guardião do Sinete. "A fama do pai", diz Maucaulay, "foi ofuscada pela do filh". Mas sir Nicholas não era um homem comum." A mãe de Bacon foi lady Anne Cooke, cunhada de sir  William Cecil, lorde Burghley, que foi tesoureiro-mor de Elizabeth e um dos homens mais poderosos da Inglaterra. O pai dela tinha sido o tutor-chefe do rei Eduardo VI; ela mesma era lingüista e teóloga, e não tinha dificuldade em se corresponder em grego com bispos. Tornou-se instrutora do filho e não poupou esforços para que ele tivesse instrução. Bacon freqüentou a Universidade de Cambridge, e viveu também em Paris. Começou a sua carreira de homem político e jurista, antes sob a rainha Isabel, e, depois, sob Jaime I, subindo até aos mais altos cargos: advogado geral em 1613, membro do Conselho particular em 1616, chanceler do reino em 1618. Foi agraciado por Jaime I com os títulos de Barão de Verulamo e Visconde de S. Albano. Entretanto foi acusado de concussão e condenado pelo Parlamento a uma multa avultuada. Perdoado pelo rei, retirou-se para as suas terras, dedicando-se inteiramente aos estudos. Faleceu em 1626. Teve uma inteligência muito esclarecida, convencido da sua missão de cientista, segundo o espírito positivo e prático da mentalidade anglo-saxônia.
A obra principal de Bacon é a Instauratio magna scientiarum, vasta síntese que deveria ter compreendido seis grandes partes. Mas terminou apenas duas, deixando sobre o resto esboços e fragmentos. As duas partes acabadas são precisamente: I - De dignitate et argumentis scientiarum; II - Novum organum scientiarum. Como se vê pelos títulos, e mais ainda pelo conteúdo, trata-se de pesquisas gnosiológicas, críticas e metodológicas, para lançar as bases lógicas da nova ciência, da nova filosofia, que deveria dar ao homem o domínio da realidade.

Os Ensaios

Sua ascensão parecia tornar realidade os sonhos de Platão  de um rei-filósofo. Porque, passo a passo com a sua subida para o poder político, Bacon estivera escalando os píncaros da filosofia. É quase inacreditável que o imenso saber e as realizações literárias desse homem fossem apenas os incidentes e as digressões de uma turbulenta carreira política. Era seu lema que se vivia melhor na vida oculta - bene vixit qui bene latuit. Não conseguia chegar a uma conclusão sobre se gostava mais da vida contemplativa ou da ativa. Sua esperança era de ser filósofo e estadista, também, como Sêneca; embora desconfiasse de que essa dupla direção de sua vida fosse encurtar o seu alcance e reduzir suas realizações. "É difícil dizer", escreve ele, e "se a mistura de contemplações com uma vida ativa ou o retiro inteiramente dedicado a contemplações é o que mais incapacita ou prejudica a ment." Achava que os estudos não podiam ser um fim ou a sabedoria por si sós, e que o conhecimento não aplicado em ação era uma pálida vaidade acadêmica. "Dedicar-se em demasia aos estudos é indolência; usá-los em demasia como ornamento é afetação; fazer julgamentos seguindo inteiramente suas regras é o capricho de um scholar. (...) Os homens astutos condenam os estudos, os homens simples os admiram, e os homens sábios se utilizam deles, obtida graças à observação." Eis uma nova nota que marca o fim da escolástica - isto é, o divórcio entre o conhecimento e o uso e a observação - e coloca aquela ênfase na experiência e nos resultados que distingue a filosofia inglesa, e culmina no pragmatismo. Não que Bacon tivesse, por um instante, deixado de amar os livros e a meditação; em palavras que lembram Sócrates, ele escreve: "sem filosofia, não quero viver", e descreve a si mesmo como, afinal de contas, "um homem naturalmente mais propenso à literatura do que a qualquer outra coisa, e levado por algum destino, contra a inclinação de seu gênio" (isto é caráter), "a vida ativa". Quase que a sua primeira publicação recebeu o título de O Elogio do Conhecimento (1592); o entusiasmo do trabalho pela filosofia nos obriga a uma citação.
"Meu elogio será dedicado à própria mente. A mente é o homem, e o conhecimento é a mente; um homem é apenas aquilo que ele sabe. (...) Não são os prazeres das afeições maiores do que os prazeres dos sentidos, e não são os prazeres do intelecto maiores do que os prazeres das afeições? Não se trata, apenas, de um verdadeiro e natural prazer do qual não há saciedade? Não é só esse conhecimento que livra a mente de todas as perturbações? Quantas coisas existem que imaginamos não existirem? Quantas coisas estimamos e valorizamos mais do que são? Essas vãs imaginações, essas avaliações desproporcionadas, são as nuvens do erro que se transformam nas tempestades das perturbações. Existirá, então, felicidade igual à possibilidade da mente do homem elevar-se acima da confusão das coisas de onde ele possa ter uma atenção especial para com a ordem da natureza e o erro dos homens? De contentamento e não de benefício? Será que não devemos perceber tanto a riqueza do armazém da natureza quanto a beleza de sua loja? Será estéril a verdade? Não poderemos, através dela, produzir efeitos dignos e dotar a vida do homem com uma infinidade de coisas úteis?"
Sua mais bela produção literária, os Ensaios (1597-1623), mostram-no ainda indeciso entre dois amores, a política e a filosofia. No Ensaio sobre a Honra e a Reputação, ele dá todos os graus de honra a realizações políticas e militares, nenhum a literárias e filosóficas. Mas no ensaio Da Verdade, ele escreve: "A indagação da verdade, que é namorá-la ou cortejá-la; o conhecimento da verdade, que é o elogio a ela; e a crença na verdade, que é gozá-la, são o bem soberano das naturezas humanas." Nos livros, "conversamos com os sábios, como na ação conversamos com tolos". Isto é, se soubermos escolher os nossos livros. "Certos livros são para serem provados", outros para serem engolidos, e alguns poucos para serem mastigados e digeridos"; todos esses grupos formam, sem dúvida, uma porção infinitesimal dos oceanos e cataratas de tinta nos quais o mundo é diariamente banhado, envenenado e afogado.
Não há dúvida de que os >Ensaios devem ser incluídos entre os poucos livros que merecem ser mastigados e digeridos. Raramente se encontrará uma refeição tão substanciosa, tão admiravelmente preparada e temperada, em um prato tão pequeno. Bacon abomina os recheios e detesta desperdiçar uma palavra; ele nos oferece uma infinita riqueza numa pequena frase; cada um desses ensaios fornece, em uma ou duas páginas, a destilada sutileza de uma mente de mestre sobre um importante aspecto da vida. É difícil dizer o que é mais excelente, se a matéria ou o estilo; porque ali se acha uma linguagem de tão alta qualidade na prosa quanto é a de Shakespeare em verso. É um estilo como o do vigoroso Tácito, compacto mas refinado; e na verdade uma parte de sua concisão se deve a uma habilidosa adaptação do idioma e do frasear latinos. Mas a sua riqueza no que se refere a metáforas é caracteristicamente elizabetana e reflete a exuberância da Renascença; nenhum homem, na literatura inglesa, é tão fértil em comparações significativas e substanciosas. A excessiva sucessão dessas comparações constitui o único defeito do estilo de Bacon: as intermináveis metáforas, alegorias e alusões caem como chicotes sobre os nossos nervos e acabam por nos exaurir. Os Ensaios são como um alimento rico e pesado, que não pode ser digerido em grandes quantidades de uma só vez; mas tomados quatro ou cinco de cada vez, constituem o melhor alimento intelectual.
No ensaio"Da Juventude e da Idade"ele condensa um livro em um parágrafo. "Os jovens são mais aptos para inventar do que para julgar, mais aptos para a execução do que para o assessoramento, e mais aptos para novos projetos do que para atividades já estabelecidas; porque a experiência da idade em coisas que estejam ao alcance dessa idade os dirige; mas em coisas novas, os maltrata. (...) Os jovens, na conduta e na administração dos atos, abraçam mais do que podem segurar, agitam mais do que podem acalmar; voam para o fim sem consideração para com os meios e os graus; perseguem absurdamente alguns princípios com que toparam por acaso; não se importam em "(isto é, em como)" inovar, o que provoca transtornos desconhecidos. (...) Os homens maduros fazem objeções demais, demoram-se demais em consultas, arriscam-se muito pouco, arrependem-se cedo demais e raramente levam o empreendimento até o fim, mas se contentam com uma mediocridade de sucesso. Não há dúvida de que é bom forçar o emprego de ambos (...), porque as virtudes de qualquer um deles poderão corrigir os defeitos dos dois." Bacon acha, apesar de tudo, que a juventude e a infância podem ter uma liberdade demasiada e, assim, crescer desordenadas e relaxadas. "Que os pais escolhem cedo as vocações e os cursos que pretendem que seus filhos sigam, pois é nessa fase que eles são mais flexíveis; e que não se concentrem demais no pensor dos filhos, pensando que estes irão dedicar-se melhor àquilo para que estejam mais inclinados. É verdade que se os pendores ou a aptidão dos filhos forem extraordinários, é bom não contrariá-los; mas em geral, é bom o preceito" dos pitagóricos: "Optimum lege, suave et facile illud faciet consuetudo" - escolha o melhor; o hábito irá torná-lo agradável e fácil. Porque "o hábito é o principal magistrado da vida do homem."
A política dos Ensaios prega um conservantismo natural em que aspira ao governo. Bacon quer um forte poder central. A monarquia é a melhor forma de governo; e em geral, a eficiência de um Estado varia com a concentração do poder. "Deve haver três pontos essenciais nas atividades" do governo: "a preparação; o debate, ou exame; e a conclusão" (ou execução). "Se quiserdes presteza, que só o do meio fique a cargo de muitos, com o primeiro e o último ficando a cargo de uns poucos." Ele é um militarista confesso; deplora o crescimento da indústria por considerar que isso deixa os homens despreparados para a guerra, e lamenta uma paz prolongada, por aplacar o guerreiro que existe no homem. Apesar disso, reconhece a importância das matérias-primas: "Sólon disse a Creso (quando, por ostentação, Creso lhe mostrou o seu ouro): "Senhor, se chegar qualquer outro que tenha melhor ferro do que vós, ele será dono de todo esse ouro."
Tal como Aristóteles, Bacon dá alguns conselhos para se evitarem revoluções. "O meio mais seguro de evitar sedições (...) é afastar a causa; porque se o combustível estiver preparado, é difícil dizer de onde virá a fagulha que irá atear-lhe fogo. (...) Tampouco se segue que a supressão dos rumores" (isto é, da discussão) "com demasiada severidade deva ser o remédio para os problemas; porque muitas vezes o desprezo é a melhor forma de contê-los, e as providências para reprimi-los só fazem dar vida longa à especulação. (...) A substância da sedição é de dois tipos: muita pobreza e muito descontentamento. (...) As causas e motivos das sedições são as inovações na religião; os impostos; as modificações de leis e costumes; o cancelamento de privilégios; a opressão generalizada; o progresso de pessoas indignas, estranhas, as privações; soldados desmobilizados; facções desesperadas; e tudo aquilo que, ao ofender um povo, faz com que ele se una em uma casa comum." A sugestão de todos os líderes, claro, é dividir seus inimigos e unir os amigos. "De modo geral, é dividir e enfraquecer todas as facções (...) contrárias ao Estado, e colocá-las longe uma das outras, ou pelo menos semear a desconfiança entre elas, não é um dos piores remédios; porque é desesperador o caso em que aqueles que apóiam o governo estão cheios de discórdia e cisões, e os que estão contra ele estão inteiros e unidos." Uma receita melhor para evitar as revoluções é uma distribuição eqüitativa da riqueza: "O dinheiro é como o esterco, só é bom se for espalhado."Mas isso não significa socialismo ou, mesmo, democracia; Bacon não confia no povo, que na sua época praticamente não tinha acesso à educação; "a mais baixa das lisonjas é a lisonja do homem do povo", e "Fócion compreendeu bem quando, ao ser aplaudido pela multidão, perguntou o que tinha feito de errado." O que Bacon quer é, primeiro, uma pequena burguesia de proprietários rurais; depois, uma aristocracia para a administração; e acima de todos, um rei-filósofo. "Quando não há exemplos de que um governo não tenha prosperado com governos cultos." Ele cita Sêneca, Antonio Pio e Aurélio; tinha a esperança de que aos nomes deles a posteridade acrescentasse o seu.

O Pensamento: A "Instauratio Magna"

A Instauratio magna scientiarum deveria ter precisamente representado a reforma do saber, deveria ter constituído a summa philosophica dos tempos novos, e lançado o fundamento do regnum hominis, tão audazmente iniciado pela ciência e pela política da Renascença. Essa obra deveria ter abraçado a enciclopédia das ciências e compreendido também as técnicas, segundo o novo ideal humano e prático e imanentista. Começa-se, portanto, com a classificação geral das disciplinas humanas, baseada no respectivo predomínio das três faculdades que presidem à organização do saber: memória, fantasia, razão. Essa classificação é baseada não no objeto do conhecimento, e sim no sujeito que conhece. 1) História tanto civil quanto natural, que registra (memória) os dados de fato; 2) Poesia, elaboração imaginativa desses dados; 3) Ciência ou filosofia, isto é, conhecimento racional de Deus, do homem e da natureza.
A teologia natural de Bacon não exclui, mas prescinde da revelação cristã e da religião positiva. A ciência do homem divide-se em ciência do homem individual (philosophia humanitatis), e em ciência da sociedade humana (philosophia civilis). A primeira diz respeito ao homem todo, espírito e matéria. A segunda diz respeito à arte de governar e às relações sociais e aos negócios. A filosofia natural ou física, divide-se em especulativa e operativa. A primeira, por sua vez, se divide emfísica especial ("que procura a causa eficiente e material"), e em metafísica ("que procura a causa final e a forma"). Pertencem pois à física operativa as artes mecânicas. Acima das ciências filosóficas particulares, Bacon põe uma ciência filosófica comum, denominando-a philosophia prima. Esta não é a ontologia tradicional, a ciência do ser em geral, mas a ciência dos princípios comuns às várias ciências.

O "Novum Organum"

Entretanto, o que interessa mais a Bacon não é esta ciência dos princípios comuns, e sim a ciência da natureza, e, portanto, o Novum organum, que deveria conter precisamente as regras para a construção da ciência da natureza. Como é sabido, Bacon reivindica, contra Aristóteles e a Escolática, o método indutivo. Aristóteles e Tomás de Aquino afirmaram claramente este método, e até o reconheceram como único procedimento inicial do conhecimento humano; entretanto a eles interessavam muito mais as causas do que a experiência, o que transcende a experiência do que a experiência; muito mais a metafísica do que a ciência.
Segundo Bacon, o verdadeiro método da indução científica compreende uma parte negativa ou crítica, e uma parte positiva ou construtiva. A parte negativa consiste, antes de tudo, em alertar a mente contra os erros comuns, quando procura a conquista da ciência verdadeira. Na sua linguagem imaginosa Bacon chama as causas destes erros comuns, fantasmas - idola - e os divide em quatro grupos fundamentais.
1) Idola tribus, a saber, os erroa da raça humana "fundamentados em a natureza como tal" (não se sabe, pois, o verdadeiro porquê);
2) Idola specus (por alusão à caverna de Platão) determinados pelas disposições subjetivas de cada um;
3) Idola fori, erros da praça, provenientes do comércio social ou da linguagem imperfeita;
4) Idola theatri, isto é, os erros provenientes das escolas filosóficas, que substituem o mundo real por um mundo fantástico, por um jogo cênico.
Desembaraçado o terreno destes erros, Bacon passa a tratar da natureza positiva, construtiva, da genuína interpretação da natureza para dominá-la. Mas, para tanto, é mister conhecer as que Bacon chama de >formas, isto é, os princípios imanentes, causa e lei da ação e da ordem das naturezas. As naturezas são precisamente os fenômenos experimentais, objeto da física especial (luz, calor, pêso, etc.); as formas são leis genéticas e organizadoras das naturezas, as essências ou causas formais, objeto da metafísica de Bacon.
Esta pesquisa, esta passagem das naturezas às formas, dos fenômenos às essências - bem conhecida pela filosofia tradicional - é determinada por Bacon, segundo um método preciso, desconhecido dos predecessores, nas famosas tabulae baconianas. Para determinar de um modo certo as causas e as leis dos fenômenos - isto é, as formas das naturezas - Bacon recolhe, antes de tudo, o maior número possível de exemplos, em que um determinado fenômeno aparece; depois enumera os casos que mais se assemelham às primeiras, em que, porém, o mesmo fenômeno não aparece. Enfim registra o aumentar ou o diminuir do fenômeno em questão, quer no mesmo objeto, quer em objetos diferentes. Têm-se, desta maneira, três espécies de registros ou tabelas: 1) tabelas de presença; 2) tabelas de ausência; 3) tabelas de gradações. É evidente que nos casos onde uma determinada natureza ou fenômeno aparecem, aí se encontrará também a sua causa e lei; nos casos em que o fenômeno não se manifesta, aí faltará também a sua causa e lei; e nos casos onde o fenômeno aumenta ou diminui, aí aumentará ou diminuirá também a sua causa e lei. A causa (forma) dos fenômenos (naturezas) será procurada, portanto, com base nos fenômenos presentes na primeira tabela; não sendo fácil, a princípio, ter-se tabelas completas e isolar as naturezas simples, e desta maneira pôr em evidência a causa, é mister estabelecê-la por hipótese, que será, em seguida, averiguada pelas experimentações.
Essa gnosiologia, metodologia (empírica) é baseada em uma metafísica, uma física materialista e, mais precisamente, atomista, bastante semelhante à de Demócrito. O mundo material é constituído de corpúsculos, qualitativamente idênticos, diversos apenas por grandeza, forma e posição. Estes corpúsculos são animados por uma força, em virtude da qual se agrupam em determinados complexos, que constituem as formas baconianas.


Baruch Spinoza

Considerações Gerais

O pensamento de Descartes exercerá uma influência vasta no mundo cultural francês e europeu, diretamente até Kant e indiretamente até Hegel. E exerceu tal influência não tanto como sistema metafísico, quanto especialmente pelo espírito crítico, pelo método racionalista, implícito nas premissas do sistema e realizado apenas parcialmente pelo filósofo.
O desenvolvimento lógico do cartesianismo é representado por alguns grandes pensadores originais: Spinoza, Malebranche, Leibniz. Spinoza é a mais coerente e extrema expressão do racionalismo moderno depois do fundador e antes de Kant; Malebranche e Leibniz encontram, ao contrário, nas suas preocupações práticas, religiosas e políticas, limitações ao desenvolvimento lógico e despreocupado do racionalismo.
Ladeia estes três pensadores uma turma numerosa de cartesianos mais ou menos ortodoxos, particularmente na França na segunda metade do século XVII. Significativa é a influência que o criticismo e o racionalismo cartesianos exerceram sobre a cultura do século de Luís XIV, o século de ouro da civilização francesa; sobre a arte de Racine e de La Fontaine, sobre a poética de Boileau, a ética de La Bruyère, o pensamento de Bayle.
Descartes teve seguidores também em determinados meios religiosos de orientação platônico-agostiniana, mais ou menos ortodoxos. Os dois centros principais desse sincretismo são representados pelo Jansenismo e pelo Oratório. Brás Pascal, porém (se bem que, em parte, jansenista), grande físico e matemático, mas de um profundo sentimento religioso e cristão, parece ter tido intuição da falha da filosofia cartesiana. À razão matemática, científica - espírito geométrico - que vale para o mundo natural mas não chega até Deus, contrapõe a razão integral - esprit de finesse - que leva até o cristianismo.
Descartes teve numerosos adversários e críticos no campo filosófico, entre os quais Hobbes. Entretanto, as oposições maiores contra o cartesianismo surgiram evidentemente no ambiente eclesiástico e político, quer católico quer protestante. Nesses ambientes houve a intuição de um perigo revolucionário para a religião e a ordem social, por causa do criticismo, mecanismo e infinidade do universo, próprios daquela filosofia.
E, no entanto, o cartesianismo forjou a mentalidade (racionalista-matemática) dos maiores filósofos até Kant. E também propôs os grandes problemas em torno dos quais girou a especulação desses filósofos, a saber: a relação entre substância finita de um lado, e entre espírito e matéria do outro. Daí surgiram o ontologismo e o ocasionalismo de Malebranche, a harmonia preestabelecida de Leibniz e o panteísmo psicofísico de Spinoza.

Baruch Spinoza

O racionalismo cartesiano é levado a uma rápida, lógica, extrema conclusão por Spinoza. O problema das relações entre Deus e o mundo é por ele resolvido em sentido monista: de um lado, desenvolvendo o conceito de substância cartesiana, pelo que há uma só verdadeira e própria substância, a divina; de outro lado introduzindo na corrente racionalista-cartesiana uma preformada concepção neoplatônica de Deus, a saber, uma concepção panteísta-emanatista. O problema, pois, das relações entre o espírito e a matéria é resolvido por Spinoza, fazendo da matéria e do espírito dois atributos da única substância divina. Une os dois na mesma substância segundo um paralelismo psicofísico, uma animação universal, uma forma de pampsiquismo. Em geral, pode-se dizer que Descartes fornece a Spinoza o elemento arquitetônico, lógico-geométrico, para a construção do seu sistema, cujo conteúdo monista, em parte deriva da tradição neoplatônica, em parte do próprio Descartes.
Os demais racionalistas de maior envergadura da corrente cartesiana se seguem, cronologicamente, depois de Spinoza; entretanto, logicamente, estão antes dele, pois não têm a ousadia - em especial Malebranche - de chegar até às extremas conseqüências e conclusões racionalista-monista, exigidas pelas premissas cartesianas, detidos por motivos práticos-religiosos e morais, que não se encontram em Spinoza. Com isto não se excluem, por parte deles, desenvolvimentos em outro sentido. Por exemplo, não se excluem os desenvolvimentos idealistas do fenomenismo racionalista por parte de Leibniz.

Vida e Obras

Baruch Spinoza nasceu em Amsterdam em 1632, filho de hebreus portugueses, de modesta condição social, emigrados para a Holanda. Recebeu uma educação hebraica na academia israelita de Amsterdam, com base especialmente nas Sagradas Escrituras. Demonstrando muita inteligência, foi iniciado na filosofia hebraica (medieval-neoplatônico-panteísta) e destinado a ser rabino.
Mas, depois de se manifestar o seu racionalismo e tendo ele recusado qualquer retratação, foi excomungado pela Sinagoga em 1656. Também as autoridades protestantes o desterraram como blasfemador contra a Sagrada Escritura. Spinoza reitrou-se, primeiro, para os arredores de Amsterdam, em seguida para perto de Leida e enfim refugiou-se em Haia. Aos vinte e cinco anos de idade esse filósofo, sem pátria, sem família, sem saúde, sem riqueza, se acha também isolado religiosamente.
Os outros acontecimentos mais notáveis na formação espiritual especulativa de Spinoza são: o contacto com Francisco van den Ende, médico e livre pensador; as relações travadas com alguns meios cristão-protestantes. Van den Ende iniciou-o no pensamento cartesiano, nas línguas clássicas, na cultura da Renascença; e nos meios religiosos holandeses aprendeu um cristianismo sem dogmas, de conteúdo essencialmente moralista.
Além destes fatos exteriores, nada encontramos de notável exteriormente na breve vida de Spinoza, inteiramente dedicada à meditação filosófica e à redação de suas obras. Provia pois às suas limitadas necessidades materiais, preparando lentes ópticas para microscópios e telescópios, arte que aprendera durante a sua formação rabínica; e também aceitando alguma ajuda do pequeno grupo de amigos e discípulos. Para não comprometer a sua independência especulativa e a sua paz, recusou uma pensão oferecida pelo "grande Condé" e uma cátedra universitária em Heidelberg, que lhe propusera Carlos Ludovico, eleitor palatino.
Uma tuberculose enfraquecera seu corpo. Após alguns meses de cama, Spinoza faleceu aos quarenta e quatro anos de idade, em 1677, em Haia. Deixou uma notável biblioteca filosófica; mas a sua herança mal chegou para pagar as despesas do funeral e as poucas dívidas contraídas durante a enfermidade.
Um traço característico e fundamental do caráter de Spinoza é a sua concepção prática, moral, de filosofia, como solucionadora última do problema da vida. E, ao mesmo tempo, a sua firme convicção de que a solução desse problema não é possível senão teoreticamente, intelectualmente, através do conhecimento e da contemplação filosófica da realidade.
As obras filosóficas principais de Spinoza são: a Ethica (publicada postumamente em Amsterdam em 1677), que constitui precisamente o seu sistema filosófico; o Tractatus theologivo-politicus (publicado anônimo em Hamburgo em 1670), que contém a sua filosofia religiosa e política.
A princípio desconhecido e atacado, o pensamento de Spinoza acabou por interessar e influenciar particularmente a cultura moderna depois de Kant (Lessing, Goethe, Schelling, Hegel, Schleiermacher, etc.), proporcionando ao idealismo o elemento metafísico monista, naturalmente filtrado através da crítica kantiana.

O Pensamento: Deus

A teologia de Spinoza é contida, substancialmente, no primeiro livro da Ethica (De Deo). Spinoza quereria deduzir de Deus racionalmente, logicamente, geometricamente toda a realidade, como aparece pela própria estrutura exterior da Ethica ordine geometrico demonstrata. Não nos esqueçamos de que o Deus spinoziano é a substância única e a causa única; isto é, estamos em cheio no panteísmo. A substância divina é eterna e infinita: quer dizer, está fora do tempo e se desdobra em número infinito de perfeições ou atributos infinitos.
Desses atributos, entretanto, o intelecto humano conhece dois apenas: o espírito e a matéria, a cogitatio e a extensio. Descartes diminuiu estas substâncias, e no monismo spinoziano descem à condição de simples atributos da substância única. Pensamento e extensão são expressões diversas e irredutíveis da substância absoluta, mas nela unificadas e correspondentes, graças à doutrina spinoziana do paralelismo psicofísico.
A substância e os atributos constituem a natura naturans. Da natura naturans (Deus) procede o mundo das coisas, isto é, os modos. Eles são modificações dos atributos, e Spinoza chama-os natura naturata (o mundo). Os modos distinguem-se em primitivos e derivados. Os modos primitivos representam as determinações mais imediatas e universais dos atributos e são eternos e infinitos: por exemplo, o intellectus infinitus é um modo primitivo do atributo do pensamento, e o motus infinitus é um modo primitivo do atributo extensão.
As leis do paralelismo psicofísico, que governam o mundo dos atributos, regem naturalmente todo o mundo dos modos, quer primitivos quer derivados. Cada corpo tem uma alma, como cada alma tem um corpo; este corpo constituiria o conteúdo fundamental do conhecimento da alma, a saber: a cada modo de ser e de operar na extensão corresponde um modo de ser e de operar do pensamento. Nenhuma ação é possível entre a alma e o corpo - como dizia também Descartes - e como Spinoza sustenta até o fundo.
A lei suprema da realidade única e universal de Spinoza é a necessidade. Como tudo é necessário na natura naturans, assim tudo também é necessário na natura naturata. E igualmente necessário é o liame que une entre si natura naturans e natura naturata. Deus não somente é racionalmente necessitado na sua vida interior, mas se manifesta necessariamente no mundo, em que, por sua vez, tudo é necessitado, a matéria e o espírito, o intelecto e a vontade.

O Homem

Do primeiro livro da Ethica - cujo objeto é Deus - Spinoza passa a considerar, no segundo livro (De mente), o espírito humano, ou, melhor, o homem integral, corpo e alma. A cada estado ou mudança da alma, corresponde um estado ou mudança do corpo, mesmo que a alma e o corpo não possam agir mutuamente uma sobre o outro, como já se viu.
Não é preciso repetir que, para Spinoza, o homem não é uma substância. A assim chamada alma nada mais é que um conjunto de modos derivados, elementares, do atributo pensamento da substância única. E, igualmente o corpo nada mais é que um complexo de modos derivados, elementares, do atributo extensão da mesma substância. O homem, alma e corpo, é resolvido num complexo de fenômenos psicofísicos.
Mesmo negando a alma e as suas faculdades, Spinoza reconhece várias atividades psíquicas: atividade teorética e atividade prática, cada uma tendo um grau sensível e um grau racional.
A respeito do conhecimento sensível (imaginatio), sustenta Spinoza que é ele inteiramente subjetivo: no sentido de que o conhecimento sensível não representa a natureza da coisa conhecida, mas oferece uma representação em que são fundidas as qualidades do objeto conhecido e do sujeito que conhece e dispõe tais representações numa ordem fragmentária, irracional e incompleta.
Spinoza distingue, pois, o conhecimento racional em dois graus: conhecimento racional universal e conhecimento racional particular. A ordem oferecida pelo conhecimento racional particular nada mais é que a substância divina; abrange ela, na sua unidade racional, os atributos infinitos e os infinitos modos que a determinam. E desse conhecimento racional intuitivo, místico, derivam necessariamente a felicidade e virtude supremas. Das limitações do conhecimento sensível decorrem o sofrimento e a paixão, dada a universal correspondência spinoziana entre teorético e prático.
Visto o paralelismo psicofísico de Spinoza, é claro que o conhecimento, no sistema spinoziano, não é constituído pela relação de adequação entre a mente e a coisa, mas pela relação de adequação da mens do sujeito que conhece a mens do objeto conhecido.

A Moral

Como é sabido, Spinoza dedica ao problema moral e à sua solução os livros III, IV e V da Ethica. No livro III faz ele uma história natural das paixões, isto é, considera as paixões teoricamente, cientificamente, e não moralisticamente. O filósofo deve humanas actiones non ridere, non lugere, neque detestari, sed intelligere; assim se exprime Spinoza energicamente no proêmio ao II livro da Ethica. Tal atitude rigidamente científica, em Spinoza, é favorecida pela concepção universalmente determinista da realidade, em virtude da qual o mecanismo das paixões humanas é necessário como o mecanismo físico-matemático, e as paixões podem ser tratadas com a mesma serena indiferença que as linhas, as superfícies, as figuras geométricas.
Depois de nos ter oferecido um sistema do mecanismo das paixões no IV livro da Ethica, Spinoza esclarece precisamente e particularmente a escravidão do homem sujeito às paixões. Essa escravidão depende do erro do conhecimento sensível, pelo que o homem considera as coisas finitas como absolutas e, logo, em choque entre si e com ele. Então a libertação das paixões dependerá do conhecimento racional, verdadeiro; este conhecimento racional não depende, entretanto, do nosso livre-arbítrio, e sim da natureza particular de que somos dotados.
No V e último livro da Ethica, Spinoza esclarece, em especial, a condição do sábio, libertado da escravidão das paixões e da ignorância. O sábio realiza a felicidade e a virtude simultânea e juntamente com o conhecimento racional. Visto que a felicidade depende da ciência, do conhecimento racional intuitivo - que é, em definitivo, o conhecimento das coisas em Deus - o sábio, aí chegado, amará necessariamente a Deus, causa da sua felicidade e poder. Tal amor intelectual de Deus é precisamente o júbilo unido com a causa racional que o produz, Deus. Este amor do homem para com Deus, é retribuído por Deus ao homem; entretanto, não é um amor como o que existe entre duas pessoas, pois a personalidade é excluída da metafísica spinoziana, mas no sentido de que o homem é idêntico panteisticamente a Deus. E, por conseguinte, o amor dos homens para com Deus é idêntico ao amor de Deus para com os homens, que é, pois, o amor de Deus para consigo mesmo (por causa precisamente do panteísmo).
Chegado ao conhecimento e à vida racionais, o sábio vive já na eternidade, no sentido de que tem conhecimento eterno do eterno. A respeito da imortalidade da alma, devemos dizer que é excluída naturalmente por Spinoza como sobrevivência pessoal porquanto pessoa e memória pertencem à imaginação. A imortalidade, então, não poderá ser entendida senão como a eternidade das idéias verdadeiras, que pertencem à substância divina. De sorte que imortais, ou eternas, ou pela máxima parte imortais, serão as almas ou os pensamentos dos sábios, ao passo que às almas e aos pensamentos dos homens vulgares, como que limitados ao conhecimento e à vida sensíveis, é destinado o quase total aniquilamento no sistema racional da substância divina.

A Política e a Religião

Spinoza tratou particularmente do problema político e religioso no Tractatus theologico-politicus. Considera ele o estado e a igreja como meios irracionais para o advento da racionalidade. As ações feitas - ou não feitas - em vista das penas ou dos prêmios temporais e eternos, ameaçados ou prometidos pelo estado e pela igreja, dependem do temor e da esperança, que, segundo Spinoza, são paixões irracionais. Elas, entretanto, servem para a tranquilidade do sábio e para o treinamento do homem vulgar.
No estado de natureza, isto é, antes da organização política, os homens se encontravam em uma guerra perpétua, em uma luta de todos contra todos. É o próprio egoísmo que impede os homens a se unirem, a se acordarem entre si numa espécie de pacto social, pelo qual prometem renunciar a toda violência, auxiliando-se mutuamente. No entanto, não basta o pacto apenas: precisa o homem do arrimo da força para sustentar-se. De fato, mesmo depois do pacto social, os homens não cessam de ser, mais ou menos, irracionais e, portanto, quando lhes fosse cômodo e tivessem a força, violariam, sem mais, o pacto. Nem há quem possa opor-se a eles, a não ser uma força superior, porquanto o direito sem a força não tem eficácia. Então os componentes devem confiar a um poder central a força de que dispõem, dando-lhe a incumbência e o modo de proteger os direitos de cada um. Só então o estado e verdadeiramente constituído. Entretanto, o estado, o governo, o soberano podem fazer tudo o que querem: para isso têm o poder e, portanto, o direito, e se acham eles ainda no estado de pura natureza, do qual os súditos saíram.
O estado, porém, não é dominador supremo, porquanto não é o fim supremo do homem. Seu fim supremo é conhecer a Deus por meio da razão e agir de conformidade, de sorte que será a razão a norma suprema da vida humana. O papel do estado é auxiliar na consecução racional de Deus. Portanto, se o estado se mantivesse na violência e irracionalidade primitivas, pondo obstáculos ao desenvolvimento racional da sociedade, os súditos - quando mais racionais e, logo, mais poderosos do que ele - rebelar-se-ão necessariamente contra ele, e o estado cairá fatalmente. Faltando-lhe a força, faltar-lhe-á também o direito. E de suas ruínas deverá surgir um estado mais conforme à razão. E, assim, Spinoza deduz do estado naturalista o estado racional.
O outro grande instituto irracional a serviço da racionalidade é, segundo Spinoza, a religião, que representaria um sucedâneo da filosofia para o vulgo. O conteúdo da religião positiva, revelada, é racional; mas é a forma que seria absolutamente irracional, pois o conhecimento filosófico de Deus decairia em uma revelação mítica; a ação racional, que deveria derivar do conhecimento racional com a mesma necessidade pela qual a luz emana do sol, decairia no mandamento divino heterônomo, a saber, a religião positiva, revelada, representaria sensivelmente, simbolicamente, de um modo apto para a mentalidade popular, as verdades racionais, filosóficas acerca de Deus e do homem; tais verdades podem aproveitar ao bem desse último, quando encarnadas nos dogmas. Por conseguinte, o que vale nos dogmas não seria a sua formulação exterior, e sim o conteúdo moral; nem se deveria procurar neles sentidos metafísicos arcanos, porque o escopo dos dogmas é essencialmente prático a saber: induzir à submissão a Deus e ao amor ao próximo, na unificação final de tudo e de todos em Deus.

PSICANÁLISE E BIOÉTICA

quinta-feira, 10 de junho de 2010
III JORNADA DO CENTRO RIOPRETENSE DE ESTUDOS PSICANALISTICOS –C.R.E.P



Sábado
Dia 12 de junho de 2010-06-08
Local: Centro de convecções da ACIRP
Av Bady Bassit,4052
São José do Rio Preto-SP

Informações e Inscrições
CREP- Centro Riopretense de Estudos Psicanalíticos
R.Omar Cintra Damião ,455
Vila Diniz, S.J. Rio Preto
17 3234-5033 / 9721-6275
“PSICANÁLISE E BIOÉTICA”
8:00h- Entrega de material
9:00 ás 12:00h

 
“BIOÉTICA NA REPRODUÇÃO HUMANA “

PROF DR EDILBERTO ARAUJO FILHO - CRM 69.058
Infertileuta, Diretor do Centro de Reprodução Humana de S.J. Rio Preto, Especialista em Ginecologia e Obstetrícia pela Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia, Mestrado e Doutorado em Ginecologia na UNESP de Botucatu, Membro da Comissão de Bioética e Biodireito da OAB regional S.J. Rio Preto e Membro da Comissão de Bioética da FUNFARME em S.J. Rio Preto.



“BIOÉTICA NA GENÉTICA”

PROF DR AGNES CRISTINA FETT CONTE - CRBIo 04735/87
Livre Docente do Departamento de Biologia Molecular da FAMERP;chefe do laboratório de Genética Humana do Hospital de Base ;chefe da Disciplina de Genética médica ;Membro do Comte de Ética em pesquisa da FAMERP;Desenvolve Pesquisas em Genética Humana e Médica,especialmente nos focos temáticos Leucemia e Autismo.



“BIOÉTICA NA QUESTÃO JURIDICA”

DR LUIZ ANTONIO VELANO – OAB 87113
Advogado,Pós –graduado em Bioética pela faculdade de medicina da USP –SP,Membro da sociedade Brasileira de Bioética –DBB,Membro da Internacional Association of



Bioética –IAB,Membro do Comitê de Ética em Pesquisa da FAMERP.
14:00 ás 17:00h



“OBESIDADE E REPERCUSSÕES PSICOLÓGICAS: UMA VISÃO BIOÉTICA”

PROF DR TANIA MARIA BORGES VIEIRA - CRP 06/62383
Psicóloga, Mestrado pelo Departamento de ginecologia e Obstetrícia, Membro Titular do Comitê e Ética em Pesquisa do Hospital da Clinicas e ex Membro de Comissão Gestora do Conselho Regional de Psicologia de Ribeirão Preto-SP



“TERMINALIDADE DA VIDA “

PROF DR LAZLO ANTONIO ÁVILA - CRP 06/2798-1
Psicólogo,Mestre e Doutor (USP),Pós doutorado pela University of Cambridge,UK, livre docente do Departamento de Psiquiatria e Psicologia Medicina da FAMEP.



Autor dos livros: Doenças do Corpo e Doenças da Alma (SP:Escuta,2002);Isso é Groddeck (SP:EDUSP,1998)e O EU e o Corpo (SP:Escuta,2004).


Investimento R$ 100,00 – Profissionais    R$ 50,00 - Estudantes



A psicanálise no divã (matéria da revista SUPERINTERESSANTE)

terça-feira, 1 de junho de 2010

Cada vez mais pessoas estão trocando o analista por medicamentos, novos tratamentos psicológicos e terapias alternativas para aliviar o sofrimento da mente. Será que as idéias de Freud estão morrendo ?

 

 Freud explica" é um dos grandes clichês do século XX. Mesmo quem nunca leu sequer um parágrafo dos mais de 20 livros do fundador da psicanálise já esbarrou com termos como complexo de Édipo, desejos reprimidos, inveja do pênis, símbolos fálicos, ego, id e superego. A figura do gênio de cabelos grisalhos, barba bem aparada, com seu sugestivo charuto e um olhar que parece penetrar nas profundezas da alma humana faz parte do inconsciente de nossa época. Aliás, a própria noção do inconsciente está para Freud como a Teoria da Relatividade para Einstein ou a evolução para Darwin. Ainda hoje, pessoas em todo o mundo se submetem ao mesmo ritual que ele desenvolveu para tratar dos males da mente: vão a um especialista, sentam-se num móvel acolchoado e começam a falar.
Apesar de tão popular, a psicanálise (nome que Freud deu a esse método, em 1896), nunca foi alvo de tantas críticas como nos últimos anos. Neurologistas e estudiosos da mente dizem que boa parte dela está mais próxima da ficção do que da ciência e que as obras de Freud hoje não passam de boa literatura (ele escrevia muito bem). Psicólogos sociais acusam a ênfase dada por Freud às relações familiares e à sexualidade como modelos limitados de interpretação do sofrimento psíquico, propondo novos caminhos para cuidar dos problemas existenciais. Contribuindo para esvaziar ainda mais os consultórios dos psicanalistas, milhares de pessoas procuram alívio para o sofrimento da alma em psicoterapias não-freudianas e até mesmo na filosofia oriental e na redescoberta da própria espiritualidade.
"Só quem tem pouco bom senso levaria hoje a sério a maioria das idéias de Freud", diz a psicóloga Sophie, professora da Faculdade Simmons, em Boston, nos Estados Unidos. Sua declaração seria mais uma dentre o coro de críticos de Freud, não fosse por um detalhe importante. O último nome de Sophie é Freud. Isso mesmo: a neta do fundador da psicanálise disse à Super que é bastante cética diante das teorias do avô e acha que pouca coisa de suas teses ainda pode ser considerada.
Não é a primeira vez que Sophie faz críticas à psicanálise. Em 1995, ela participou, junto com diversos críticos de Freud, nos Estados Unidos, de uma manifestação contra o tom "adulatório" de uma exposição sobre seu avô que seria inaugurada naquele ano, na Biblioteca do Congresso Americano. Além de ser adiada para 1998, quando finalmente foi aberta, a exposição incorporou uma "visão mais crítica de Freud" e foi um indício de que os ataques à psicanálise não iriam parar por aí.
Poucos desses críticos deixam de reconhecer, é claro, a genialidade e o pioneirismo do pensador austríaco. Mas isso não os impede de atingir em cheio a psicanálise ao contestarem sua validade atual como tratamento clínico da mente. "Não há nenhuma prova de que os seus resultados sejam eficazes", diz a neta de Freud. "A psicanálise se tornou uma espécie de religião." Como o tratamento pode ser prolongado por anos, exigindo sessões semanais, ela ainda teria o inconveniente de ser uma religião muito cara.
Afinal, vale ou não a pena pagar por anos de análise? Os psicanalistas afirmam que sim e rebatem as críticas dizendo que elas são típicas de uma época em que as pessoas querem resolver seus problemas existenciais na farmácia, como se fosse possível encontrar a felicidade em cartelas de antidepressivos, como o Prozac. O problema com as drogas é que elas atuariam nos sintomas e não nas causas do sofrimento psíquico. Passado o efeito do medicamento, todas as insatisfações voltariam porque seus nós não teriam sido desatados. "Ninguém tem dúvidas de que muitas das novas drogas podem aliviar os sintomas de diversas doenças da mente", diz Peter Gay, psicanalista, historiador, professor emérito da Universidade de Yale e autor da famosa biografia Freud: Uma Vida para o Nosso Tempo. "Mas elas não podem curar ninguém. A técnica do tratamento pela fala, criação de Freud, é e permanecerá essencial." (Veja as principais idéias de Freud e suas críticas na página ao lado.)
Talvez seja cedo para afirmar se, no futuro, Freud será mais lembrado como o médico que inventou um tratamento revolucionário para as doenças mentais ou como um dos 26 autores mais importantes da literatura, na seleção que o crítico literário Harold Bloom fez em seu livro O Cânone Ocidental.
O próprio Freud, em alguns de seus textos, aventou a possibilidade de que um dia a psicanálise talvez fosse deixada para trás, substituída por um novo tratamento. A única coisa certa é que, para continuar mantendo seu grau de influência, ela terá que responder aos seus principais concorrentes do início do século XXI.

Freud x neurociência
Pouca gente sabe, mas antes de criar a psicanálise o próprio Freud passou anos de sua vida tentando entender o funcionamento da fisiologia do cérebro e como ele poderia desencadear os distúrbios mentais, igualzinho a qualquer neurocientista moderno. Entre 1882 e 1885, Freud trabalhou com pacientes que sofriam de lesão cerebral no Hospital Geral de Viena, já tendo pesquisado o sistema nervoso de lampréias e lagostins. Então por que boa parte dos neurocientistas atuais vive criticando suas idéias?
"Não se trata de uma crítica a Freud, trata-se de reconhecer que os modelos da psicanálise não se encaixam com o que sabemos hoje sobre o funcionamento do cérebro", diz o neurocientista Ivan Izquierdo, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. "Sabe-se hoje que doenças como a esquizofrenia, que no passado era relacionada a um trauma psicológico, têm origem orgânica." Izquierdo diz que diversos estudos revelam que os pacientes esquizofrênicos têm um déficit anatômico na região do nosso cérebro que fica logo abaixo da testa, conhecida como córtex pré-frontal.
Esse déficit geraria uma falha na chamada memória de trabalho (a memória usada para nos orientar no aqui e agora), fazendo com que o esquizofrênico perceba a realidade como alucinação. "Para controlar os mecanismos que disparam essas alucinações, a medicação é fundamental", diz o neurocientista. "Utilizar o modelo freudiano para tentar curar alguns desses distúrbios pode ser tão inútil quanto tentar encontrar um erro num programa de computador quando a base do problema está na máquina."
Máquina? Não seria uma simplificação comparar um homem a um computador, traçando uma linha clara entre um hardware, formado pelo cérebro e suas interações químicas, e um software, constituído por nossas emoções, pensamentos e experiências de vida? Izquierdo diz que é claro que a divisão não é tão simples e há uma série de interações entre as predisposições orgânicas e história de vida. "Se você tem uma tendência para a depressão, por exemplo, é óbvio que ela vai estar associada a algumas passagens de sua vida", diz Izquierdo. "Mas a predisposição já estava lá, enquanto outras pessoas, com experiências semelhantes, reagem de outra forma apenas por não terem a mesma tendência."
Ele diz que isso não significa que um evento como a perda de uma pessoa querida ou um trauma de guerra não possa causar um distúrbio numa pessoa normal. "É claro que pode", diz Izquierdo. Mas mesmo nesses casos, conhecidos como síndrome pós-trauma, ele diz que a psicanálise freudiana nem sempre é útil e às vezes pode até ter efeito negativo. "Trabalhar com a memória nesses casos pode despertar sensações terríveis que agravam o estado do paciente", diz.
"É claro que é fundamental fazer algum tratamento psicológico, mas outras terapias não-freudianas podem ser mais indicadas."
Apesar de reconhecer a importância do legado de Freud com a criação do tratamento pela fala – disseminado em quase todas as terapias –, Izquierdo diz que usar conceitos como o de complexo de Édipo para entender a psique é quase tão gratuito como era, no tempo de Jesus, dizer que um epilético estava possuído pelo demônio. "A psicanálise está cheia de metáforas que podem até ser úteis para descrever algumas condições humanas", diz Izquierdo. "Mas útil não quer dizer verdadeiro." Então como explicar o depoimento de milhares de pessoas que atestam que a análise freudiana mudou suas vidas para melhor?
O neurocientista Renato Sabattini, da Unicamp, diz ter a resposta para essa pergunta: "A psicanálise funciona, sim. Mas não pela validade de suas teorias, e sim pelo efeito placebo que a fala tem no tratamento de distúrbios da mente". Sabattini diz que em casos de depressão e ansiedade esse efeito pode ter resultados favoráveis de até 40%.
Já em casos em que a origem orgânica seria mais evidente, como na esquizofrenia, os resultados seriam menores, cerca de 20%. "Não se trata de negar o óbvio benefício que ouvir o paciente pode trazer", diz
Sabattini. "Trata-se de reconhecer que não há nenhuma base científica que sustente a psicanálise."
Como exemplo, ele cita o papel que Freud deu aos sonhos em seu livro
A Interpretação dos Sonhos, um marco na história da psicanálise, escrito em 1900. Para Freud, o conteúdo do sonho, por mais absurdo que possa parecer ao senso comum, estaria repleto de desejos inconscientes que poderiam ser identificados pela interpretação do analista. "Se você sonhasse com alguns objetos fálicos, isso poderia significar desejos sexuais implícitos, o que era típico da sociedade em que ele viveu", diz Sabattini. "Hoje, se um sujeito passa muito tempo sem um contato sexual, ele não sonha com objetos que lembram órgãos sexuais. Ele sonha com sexo explícito." Sabattini diz que a neurociência pode mostrar apenas que o sonho funciona como uma espécie de organizador do cérebro e diz que animais que são privados de entrar no estado de sono REM, responsável pelo sonho, passam a ter inúmeros problemas, como déficit de aprendizado.
"É claro que, se você procurar, pode encontrar no seu sonho padrões e significados para o que quiser", diz Sabattini. "Da mesma forma que você pode dar inúmeros significados a um quadro abstrato numa exposição de arte moderna." Mas isso é ciência?
"Não", responde Adolf Grünbaum, considerado um dos mais ferrenhos críticos da psicanálise no mundo. Professor de Psiquiatria e chefe do departamento de Filosofia da Ciência da Universidade de Pittsburgh, Estados Unidos, ele espinafra a validade do método inventado por Freud em seus livros The Foundations of Psychoanalysis: A Philosophical Critique (Os Fundamentos da Psicanálise: Uma Crítica Filosófica, inédito no Brasil) e Validation in the Clinical Theory of Psychoanalysis (Validade na Teoria Clínica da Psicanálise, também inédito aqui). "Está claro que ela já está morrendo em países como a Alemanha, a Suíça e os Estados Unidos", diz Grünbaum. "Talvez ela tenha uma sobrevida maior na França, Itália e Argentina, mas basta observar o decrescente número de psiquiatras que estudam para ser psicanalistas para constatar sua decadência." Ele diz que essa tendência deve se manter graças a três fatores.
O primeiro seria a falta de evidências de que o tratamento psicanalítico tem uma boa relação custo/benefício – para ele, há tratamentos mais rápidos e baratos, e ninguém conseguiu provar que a psicanálise é mais eficiente do que esses tratamentos. A segunda razão seria a ascensão dos novos medicamentos. Aliadas a psicoterapias de curto prazo, as novas drogas estariam tomando o lugar da psicanálise.
E o terceiro e mais controverso fator seria a falta de critérios para o credenciamento de psicanalistas, ao menos nos Estados Unidos. "Há todo um sistema corrompido e arbitrário, já que não existem pré-requisitos sólidos para alguém ser considerado um psicanalista", diz o psiquiatra.
Para Grünbaum, um dos traços marcantes que comprovaria a falta de fundamento científico da psicanálise estaria em sua quase infinita capacidade para rebater qualquer dado que contradiga suas teorias. Costuma-se ilustrar esse traço com a história de um analista que, baseado nas palavras de um adolescente, interpreta que o garoto apresenta uma clássica síndrome de Édipo: quer matar seu pai e copular com sua mãe. Se o rapaz concordar com a interpretação, ótimo. Se a rejeitar, sua negação é uma forte prova de que ele está reprimindo seus impulsos. Essa estratégia é conhecida pelos detratores da psicanálise como "cara eu ganho, coroa você perde", e teria sido usada por Freud e seus seguidores. "Não é à toa que nas principais universidades americanas as idéias de Freud estão saindo dos departamentos de medicina e psicologia e sobrevivem apenas nos cursos de literatura."
Será mesmo? Pelo menos no Departamento de Neurologia da Faculdade de Medicina da Universidade de Iowa, há um neurocientista bem mais cauteloso em suas críticas à psicanálise. Conhecido no Brasil por seus livros O Erro de Descartes e O Mistério da Consciência, o neurologista António Damásio diz que, mesmo reconhecendo as limitações da psicanálise, é preciso admitir que Freud estava correto em vários aspectos sobre o cérebro. "O problema central da psicanálise não está em Freud", diz Damásio. "Está num imenso número de psicanalistas que se fecharam ao mundo exterior, apegando-se a teorias como se fossem dogmas religiosos."

Freud X Psicologia Social
Não deixa de ser uma ironia, mas enquanto a neurociência critica o método freudiano pela falta de objetividade, uma corrente da psicologia contemporânea diz que a psicanálise não pode ajudar o homem moderno exatamente pelo motivo oposto: ela estaria excessivamente fechada num modelo de indivíduo do tempo de Freud, não levando em consideração que há uma infinidade de outras causas que podem ser responsáveis pelos distúrbios mentais.
Ou seja: uma acusação é de falta de solidez científica; a outra é de excesso de rigidez e cientificismo na hora de lidar com o comportamento humano. "Não adianta ficar procurando a origem do sofrimento psíquico apenas no inconsciente, como faz a psicanálise, ou numa origem orgânica, como fazem os neurocientistas", diz Luis Antônio Baptista, professor de Psicologia Social da Universidade Federal Fluminense (UFF). "Há outros fatores no mundo real, como viver numa cidade violenta ou o medo de perder o emprego, que podem, por exemplo, levar alguém à depressão."
O que Luis Antônio e outros psicólogos sociais criticam no método psicanalítico é a ênfase de que existe uma clara fronteira entre o indivíduo, de um lado, e o mundo externo, do outro. Ou seja: sabe essa idéia que você tem de que de há um universo só seu, bem separado da vida social? Pois é. Para esses psicólogos, essa idéia de indivíduo não tem nada de natural. "Ela é um produto de uma época e, como tal, muda de tempo em tempo e pode até mesmo variar de cultura para cultura", diz Silvia Carvalho, professora de psicologia social da UFF. Seria inútil, por exemplo, tentar adaptar alguns conceitos psicanalíticos para um membro da comunidade ianomâmi, que teria uma visão de indivíduo completamente diferente de quem vive numa sociedade capitalista competitiva. Da mesma forma, conceitos como o complexo de Édipo seriam produto da sociedade vienense no tempo de Freud, e não "eventos naturais" válidos em qualquer época.
Michel Foucault, Gilles Deleuze e Félix Guattari são os três filósofos franceses que serviram de base para esse questionamento da psicanálise. Em 1972, Guatarri e Deleuze escreveram juntos o livro O Anti-Édipo, criticando as idéias de Freud e seus seguidores por sempre buscarem um evento ou um trauma original para enquadrar o analisado numa certa categoria. Segundo os dois filósofos franceses, essa é uma visão extremamente reducionista do homem. O problema é: se já era complicado para um psicanalista vasculhar o mundo interior de uma pessoa, como lidar com o sofrimento pessoal de alguém alargando essas fronteiras para outras fatores como a política, a economia? Parece impossível na prática, não?
A médica e analista carioca Ana Rego Monteiro garante que é perfeitamente viável. Ela diz que, em vez de privilegiar, como na psicanálise, as relações familiares e a infância como uma das fontes mais importantes para o sofrimento de alguém, o analista tem que levar em conta que outras forças como a pressão no trabalho ou mesmo a exigência de se enquadrar num padrão de beleza não devem ter necessariamente um peso menor que aqueles fatores para desencadear uma depressão. "No lugar de classificar o paciente dentro de um quadro de doença psíquica, é preciso analisar as forças que estão atuando para produzir esse sofrimento", diz a analista. Ela propõe, por exemplo, que o aumento de transtornos como a síndrome de pânico estaria ligado às mudanças econômicas, políticas e tecnológicas do mundo moderno. "É inútil querer curar alguém apenas com medicamentos ou tentando solucionar conflitos interiores", afirma. "É preciso entender o conjunto de outras forças políticas que agem na mente dessa pessoa."

Freud x Nova Era
Como um bom gastroenterologista, Wilhelm Kenzler cuidava com esmero do estômago de seus pacientes. Examinava, entubava, operava e indicava remédios para aliviar a dor. Até que um dia, quando fazia seu doutorado na Alemanha, na década de 1950, ele atendeu um homem com uma intrigante dor de estômago. Depois de um exame físico detalhado, o médico não achou absolutamente nada de anormal com o paciente – pelo menos até começar a conversar com ele. "Ele sentou e me contou sua história de vida", diz Kenzler. "Quando me disse que queria largar sua mulher, 15 anos mais velha que ele, e que seu relacionamento com ela era típico de mãe e filho, percebi qual a verdadeira origem de sua dor de estômago."
Depois disso, o médico decidiu estudar psicanálise para compreender melhor as chamadas doenças psicossomáticas – que produzem sintomas físicos mas têm origem na mente. "Me submeti a cinco anos de análise, fiz o curso na Sociedade Brasileira de Psicanálise, mas cheguei à conclusão de que o modelo freudiano era insuficiente como resposta às minhas inquietações", diz Kenzler. Foi então que ele tomou uma decisão cada vez mais comum entre as pessoas que procuram alternativas para o divã: trocou Freud pela espiritualidade. "A psicanálise cuida apenas de uma dimensão do ser humano, mas há outras dimensões que precisam ser levadas em consideração", diz.
Você já deve ter notado que esse tipo de crítica a Freud é totalmente diferente das feitas pelos neurocientistas ou por novas correntes da psicologia. Não se trata de acusar a psicanálise de falta de rigor científico ou de negligência diante do contexto social. Trata-se de criticá-la por ignorar a existência de outros estados transcendentais da mente que nem a teoria de Freud nem a psicologia ocidental e muito menos a psiquiatria levam em consideração.
"Ninguém tem dúvida de que a visão de Freud sobre o funcionamento da mente e o desenvolvimento da personalidade tiveram conseqüências extraordinárias", disse à Super o físico austríaco e professor da Universidade de Berkeley, na Califórnia, Fritjof Capra. Considerado um dos mais famosos críticos da visão mecanicista da ciência ocidental, ele diz que a psicanálise freudiana terminou se fechando para as experiências religiosas e místicas. "Apesar de Freud ter se interessado pela religião e pela espiritualidade durante toda a sua vida, ele chegou a considerar a religião uma neurose da humanidade", diz o físico. "Isso fez com que experiências dessa natureza passassem a ser enquadradas até mesmo como sintomas de uma psicose."
A americana Suzan Andrews, monja de meditação radicada em São Paulo, diz que essa limitação da psicanálise freudiana não existe à toa. "De William James a Freud, a psicologia ocidental tem pouco mais de 200 anos", diz Suzan. "Já a psicologia oriental estuda esses estados mentais há cerca de 7000 anos."
Suzan, que passou 30 anos entre a Índia e a China estudando técnicas de meditação, diz que o método freudiano de cura pela fala não é o melhor caminho para tratar do sofrimento da mente. "Em vez de alívio, ficar falando de suas angústias despende ainda mais energia do corpo", diz Suzan. "A meditação pode trazer resultados melhores que o tratamento verbal." Mas isso, por acaso, não seria uma fuga dos problemas existenciais que a psicanálise traria à tona?
Ela garante que não. "Não se trata de fugir dos nossos conflitos internos", diz Suzan. "Trata-se de fortalecer a mente para que você responda a esses conflitos com compaixão, até mesmo porque a origem deles não está necessariamente restrita a passagens da infância."
A insistência em procurar a origem da infelicidade humana com base apenas nessa vida é, para as correntes espiritualistas, a maior limitação da psicanálise. Isso mesmo: para eles, boa parte do que você é hoje em dia é produto de inúmeras reencarnações.
É nisso que acreditam, por exemplo, as milhares de pessoas que lêem e seguem a filosofia budista do Dalai Lama, líder espiritual do povo tibetano. (Leia a reportagem de capa da
Super "A Vida Segundo o Dalai", edição de agosto de 2001.) O psiquiatra americano Howard Cutler, que escreveu com o Dalai Lama o best-seller A Arte da Felicidade, resume assim a principal semelhança e a maior diferença entre o budismo e a psicanálise: "A semelhança é que as duas filosofias acreditam que há algo como o inconsciente que registra eventos do passado e moldam nosso comportamento", diz Cutler. "A diferença é que, segundo o budismo, esses registros podem ter origem em vidas passadas." Nesse caso, pouco adiantaria ir a um analista para compreender seus problemas atuais trabalhando com lembranças dessa vida. E talvez por isso exista cada vez mais gente buscando a felicidade e o auto-conhecimento na sua própria religiosidade – em detrimento do divã.

O futuro de Freud
É bem provável que a essa altura você já esteja pensando em como vai dizer a seu psicanalista que pretende suspender suas sessões. Mas será que os críticos de Freud conseguirão, realmente, enterrá-lo no passado? "Freud sobreviverá", garante o historiador Peter Gay. Quanto às críticas de que a psicanálise não tem base científica e sempre arruma um jeito de ter resposta para tudo, ele rebate: "Esse ataque é extremamente simplista. Freud deixou clara sua aversão ao analista com respostas prontas para tudo. Só um irresponsável se comportaria dessa forma." O problema é: quem pode definir quais parâmetros um terapeuta tem que seguir para ser chamado de psicanalista?
"Por enquanto, ninguém", diz Márcio Giovanetti, presidente da Associação Brasileira de Psicanálise. Como a profissão não é regulamentada no Brasil, ele diz que qualquer um pode dizer que é psicanalista – mesmo que não tenha lido sequer um parágrafo da obra de Freud. "Esse é um dos motivos pelos quais algumas pessoas terminam descrentes quanto à psicanálise", diz Giovanetti. "Mas é um absurdo pôr em dúvida a validade dos conceitos de Freud pela atuação de maus profissionais. Até porque isso pode ocorrer em qualquer profissão."
Quanto à acusação de que Freud criou uma espécie de religião dogmática, os psicanalistas lembram que ele fez inúmeras revisões de suas teorias quando elas não se adequavam ao tratamento clínico. E mais: Freud teria premeditado o papel que as drogas poderiam ter, num texto de 1938, um ano antes de sua morte, quando escreveu que "o futuro poderá nos ensinar a exercer uma influência direta (na mente) por meio de substâncias químicas".
O psicanalista e professor do departamento de Psiquiatria da Unicamp, Mário Eduardo Pereira, diz que é preciso acabar com essa idéia de que de um lado está a psiquiatria e, do outro, a psicanálise. "Assim como alguns psicanalistas podem ter uma devoção quase religiosa aos modelos de Freud, há um discurso não menos religioso de que os novos medicamentos podem resolver tudo sozinho."
A historiadora e psicanalista francesa Elisabeth Roudinesco é uma das principais críticas desse discurso da psicofarmacologia. Em seu livro Por que a psicanálise?, ela lembra que nem os criadores desses medicamentos acreditavam que eles seriam uma espécie de pílula mágica para os males existenciais. O psicanalista Renato Mezan, professor da PUC de São Paulo, concorda: "Essa questão de que existe uma oposição entre a neurociência e a psicanálise está mal colocada" diz. "Não há nenhuma incompatibilidade entre as duas, ao contrário: drogas como os antidepressivos podem ajudar a criar melhores condições para que o paciente possa ser analisado."
O historiador Peter Gay diz que, no futuro, um caminho promissor para o estudo da mente terá até que contar com a parceria de neurologistas e psicanalistas. "Já existem pessoas nesse momento que estão tentando formular uma nova teoria da mente que possa congregar o trabalho dos neurologistas com o dos psicanalistas", diz Gay.
"O problema é que falta um grande inovador como Freud para unir a produção dessas diferentes áreas." O psiquiatra Henrique Del Nero, da USP, diz que se a psicanálise não fizer isso ela se tornará apenas "uma forma sofisticada e cara de buscar autoconhecimento." Mas, afinal, as idéias de Freud morreram ou não?
Talvez tenha sido o americano John Horgan, ex-editor da revista Scientific American e bastante conhecido pelo seu ceticismo, quem tenha dado a resposta mais perspicaz a essa pergunta. Em seu livro A Mente Desconhecida, ele diz que não, Freud ainda não está morto. Mas, em vez de atribuir essa sobrevivência à validade intrínseca das teorias do fundador da psicanálise, ele aponta uma razão mais singela para a persistência das idéias de Freud: "Se os modelos da psicanálise são deficientes, a neurologia também estaria longe, muito longe de desvendar o maior mistério da ciência: a mente humana. E, para aumentar o nível de felicidade de alguém que sofre, vale o que funcionar, seja a ciência ou não. É isso, aparentemente, que as pessoas estão dizendo aos estudiosos.
Teoria trincada: será que o tratamento psicanalítico criado por Freud sobreviverá até o fim do século XXI?

Perguntado certa vez se o seu charuto não seria um símbolo fálico, Freud teria respondido: "Às vezes, um charuto é apenas um charuto"

A teoria psicanalítica teria sido escrita para a sociedade vienense na passagem do século XIX para o século XX – e não traduziria mais a psique humana de hoje

Freud editando o manuscrito de um de seus últimos livros: no final da vida, ele chegou a prever que os medicamentos teriam papel destacado no tratamento dos distúrbios da mente

Sigmund Freud, numa foto de 1939, ano de sua morte: mais de meio século depois, o mundo ainda é freudiano

Inconsciente
Apesar de não ter sido o primeiro a usar esse conceito, Freud inovou ao tratá-lo como uma espécie de depósito dos nossos desejos reprimidos ligados à sexualidade ou à agressão que ficam atuando sobre a mente consciente. Ao ouvir o paciente falar livremente no divã, o psicanalista o ajuda a compreender como a pressão do inconsciente está produzindo seus distúrbios para que ele possa se libertar deles.
Outras correntes, como a psicologia cognitiva, também trabalham com o conceito do inconsciente. A diferença é que, nesse caso, o inconsciente em princípio não poderia ser acessado pela consciência. Ele seria uma espécie de processador paralelo inerente à mente humana – e não um repositório de desejos reprimidos.

Sonhos
Com a publicação do seu livro A Interpretação dos Sonhos (1900), Freud diz que o sonho é a linguagem simbólica pela qual se manifesta o inconsciente, com todos os seus conflitos não resolvidos e desejos reprimidos.
A neurociência vê o sonho como um mecanismo auto-regulador do nosso cérebro. Ele faria a digestão dos acontecimentos do dia organizando quais informações devem ser guardadas nos arquivos da memória de longa duração e apagando as que não foram usadas.

Infância e sexualidade
Freud acredita que a mente adulta vai sendo moldada na infância, de acordo com as experiências de prazer e desprazer que ela vivencia em cada fase do desenvolvimento da libido – libido, para Freud, é a energia corporal expressa pelos instintos sexuais. Ela já estaria presente no bebê, por exemplo, ao se relacionar com seus pais. Se o bebê for menino, ele deseja ter a mãe para si e enxerga o pai como um rival que reprime seu desejo (complexo de Édipo). Já a menina desejaria o pai – mas também reprime essa vontade por temer perder o amor de sua mãe por isso. Mesmo permanecendo ocultos no inconsciente, esses desejos poderiam gerar distúrbios na mente do adulto.
Ainda que reconheçam o pioneirismo de Freud em descobrir que a criança também sente prazer sexual (não expressa ainda pelos órgãos genitais), seus opositores dizem que ele exagera na atenção que dá às relações da criança com seus pais como determinantes para definir o equilíbrio da vida mental do adulto. Para esses críticos, essa abordagem seria válida apenas no conceito da família da sociedade vienense em que Freud viveu.

Id, superego e ego
Para Freud, a personalidade está dividida em três partes. A primeira delas, o id, seria a mais profunda da psique humana. Lá estariam depositados os impulsos instintivos dominados pelo desejo de prazer. Ou seja: é o lado animal do homem, quase todo insconsciente. Já o superego seria uma espécie de polícia interna. É aquela voz que parece ser o senhor da razão, julgando nossos atos e, na maioria das vezes, censurando-nos. No meio do conflito entre os desejos do id e a censura do superego, estaria o ego. O ego é a parte da personalidade que está em contato direto com a realidade externa. Criado a partir do id, tem a função de garantir a saúde, a segurança e a sanidade da pessoa.
Alguns críticos dizem que esse modelo de Freud não tem nenhuma contrapartida com a neurociência – mas a neurociência tampouco parece ter algum modelo completo do funcionamento da mente. Enquanto psicólogos sociais consideram essa divisão reducionista, os espiritualistas dizem que a mente não está dividida apenas em três partes. Haveria outras forças, transcendentais, atuando sobre ela.

NA LIVRARIA
Por que a Psicanálise?, Elisabeth Roudinesco, Jorge Zahar Editor, 1994
Freud - Uma Vida para o Nosso Tempo, Peter Gay, Companhia das Letras, 1990
A Mente Desconhecida, John Horgan, Companhia das Letras, 2002
Freud, Sigmund Freud, Abril Cultural, 1978
Folha Explica Freud, Luiz Tenório Oliveira Lima, Publifolha, 2001
O Ponto de Mutação, Fritjof Capra, Cultrix, 2000
A Arte da Felicidade, Dalai Lama e Howard Cutler, Martins Fontes, 2002
The Freud Encyclopedia, Edward Erwin, Routledge, 2002
Tempo de Muda, Renato Mezan, Companhia das Letras, 1998
Dicionário de Psicanálise, Elisabeth Roudinesco, Jorge Zahar Editor, 1998

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Eu ?! Particularmente acredito que "toda unanimidade é burra" e sobre pensar... fica uma alegoria de Rubem Alves


"O que é científico?" (IV)
Um cozinheiro cozinha. Um jardineiro cuida do jardim. Um barbeiro corta cabelo e barba. Um motorista guia carros. Um cientista, o que é que ele faz?
A palavra "cientista" é um bolso enorme. Arca de Noé. Lá dentro se encontram os tipos mais variados: astrônomos, geneticistas, clonadores de ovelhas, físicos quânticos, meteorologistas, químicos especialistas em aromas, anestesistas, caçadores de virus... A lista não tem fim. Olhando para aquilo que estão fazendo eles parecem pessoas que nada têm a ver umas com as outras. No entanto, um único nome é usado para todos, "cientista", o que quer dizer que, no fundo, eles estão jogando o mesmo jogo. Qaul é o jogo que um cientista joga?
"Um cientista, seja um teórico ou um experimentador, propõe declarações, ou sistemas de declarações, e as testa passo a passo." É assim que Karl Popper define o que um cientista faz. Popper é, provavelmente, o mais famoso filósofo da ciência do nosso século. Um filósofo da ciência é alguém que tenta entender o que um cientista faz. Frequentemente a gente faz coisas, e as faz bem, mas as faz de maneira tão natural e automática que nem se dá conta de como elas são feitas. Tal como aconteceu com aquela centopeia... Encontrou-se, um dia, com um gafanhoto que lhe disse:
" Da. Centopéia, a senhora é um assombro, tantas pernas, todas andando ao mesmo tempo, nunca tropeçam, nunca se embaralham... Da. Centopéia, por favor me diga: quando a senhora vai andar, qual é a primeira perna que a senhora mexe?" A Centopeia se assustou. Nunca havia pensado nisso. Sempre andara sem precisar pensar. "Não sei, senhor Gafanhoto. Mas prometo: da próxima vez que eu andar, prestarei atenção." Termina a estória dizendo que desde esse dia a Centopéia ficou paralítica... Isso é verdadeiro de todos nós. 
Veja, por exemplo, a fala - não é centopéia, é miriápodo: milhares de regras, complicadíssimas. Só que, ao falar, não temos consciência dessas regras. Não penso nas regras da gramática agora, que estou escrevendo. Escrevo da mesma forma como a Centopéia andava. Os gramáticos tentam entender as regras da fala. O filósofo da ciência se parece com o gramático: ele tenta entender as regras desse jogo linguístico que o cientista joga.
Contar piada é um jogo de linguagem. O seu objetivo é produzir o riso. A gente ri por causa das palavras. Ninguém, ao ouvir uma piada, pergunta se ela é verdadeira. Piada é jogo do riso, não é jogo da verdade. A "coisa" da piada, o humor, se encontra nas próprias palavras, e não na vida real, fora delas. O sargento berra; "Ordinário, marche!" Ninguém discute. Os pracinhas se põem a marchar. Ninguém ri. As palavras do sargento não são piada; são uma ordem. Ninguém pergunta se elas enunciam a verdade. Uma ordem não é para enunciar uma verdade; é um jogo de palavras cujo objetivo é produzir obediência. E o jogo de palavras que o cientista joga? Qual o seu objetivo?
As palavras do cientista têm por objetivo enunciar a verdade. Como num espelho: a imagem, dentro do espelho, não é real; é virtual. Mas, olhando para o espelho retrovisor do meu carro eu vejo o carro que vai me ultrapassar. A imagem virtual corresponde a uma coisa real. Eu acredito na imagem. Se não acreditar poderei provocar um desastre. Assim são as palavras do jogo que a ciência joga: elas buscam ser imagens fieis da realidade.
A ciência nasceu da desconfiança dos sentidos. Ela acredita que a realidade é como uma mulher pudica acredita que aquilo que a gente vê não é a verdade. Ela fica envergonhada quando é vista através dos sentidos. Esconde-se deles. Dissimula, Engana. A realidade, para ser vista em sua maravilhosa nudez, só pode ser vista - pasmem! - com o auxílio de palavras. As palavras são os olhos da ciência. "Teorias" e "hipóteses": esses são os nomes que esses olhos comumente recebem. Na verdade, todas a teorias não passam de são hipóteses. Uma teoria é uma hipótese que ainda não foi desbancada. A ciência, assim, pode ser descrita como um "strip-tease" da realidade por meio de palavras. E o que é que a gente vê, ao final do "strip-tease"? A gente vê uma linguagem... Quem percebeu isso em primeiro lugar foram os filósofos gregos que diziam que, lá no fundo de todas as coisas sensíveis se encontra algo que pode ser visto apenas com os olhos da razão. A essa "coisa" eles deram o nome de "Logos", que quer dizer "palavra". Essa é a razão por que Popper definiu o cientista como alguém que "propõe declarações ou sistemas de declarações". Um cientista brinca com palavras. Mas não qualquer palavra. Muitas palavras são proibidas. Quais são as palavras que são permitidas?
Galileo responde: "O livro da filosofia é o livro da natureza, livro que aparece aberto constantemente diante dos nossos olhos, mas que poucos sabem decifrar e ler, porque ele está escrito com sinais que diferem daqueles do nosso alfabeto, e que são triângulos e quadrados, círculos e esferas, cones e pirâmides."
Com isso voltamos àquela aldeia de pescadores que aprenderam a pescar os peixes que nadavam no rio da realidade ( ver a crônica do dia 31 de maio)... Aprenderam que peixes se pescam com redes. Contei essa parábola como analogia para o que fazem os cientistas, pois eles também são pescadores que pescam no rio da realidade. Também eles usam redes para pescar. As redes dos cientistas feitas com palavras. Somente palavras que possam ser amarradas com nós de números. Os peixes que caem nas malhas da ciência são entidades matemáticas - do jeito mesmo como Galileu o disse.
Um tolo poderia dizer: "Que pena que se tenha de usar redes! Nas redes os buracos são muito maiores que as malhas! A rede deixa passar muito mais do que segura! Seria melhor se, ao invés de redes, usássemos lonas de plástico que não deixam passar nada. Assim, pegaríamos tudo!" Palavras de um tolo. Uma lona de plástico, por pretender pegar tudo, não pegaria nada. A rede só pega peixes porque os seus buracos deixar passar. As redes da ciência deixam passar muito mais do que seguram. As coisas que as redes da ciência não conseguem segurar são as coisas que a ciência não pode dizer. As coisas que "não são científicas". Sobre elas ela tem de se calar.
Estou ouvindo "Eu não existo sem você", do Tom Jobim. Só posso ouvi-la por causa da ciência. Foi a ciência que, com teorias e medições, construiu o meu computador. Foi ela que, com teorias e medições, produziu o CD, traduzindo a música em entidades eletrônicas definidas. Mas um engenheiro surdo poderia ter feito isso. Porque as redes da ciência não pegam música. Pegam entidades eletrônicas quantificáveis. Assim, um cientista que fosse também um filósofo, ao declarar "Isso não é científico", estaria simplesmente confessando: "Isso, as redes da ciência não conseguem pegar. Elas deixam passar. Seria necessário uma outra rede..."
Volto ao Manoel de Barros: "A ciência pode classificar e nomear os órgãos de um sabiá mas não pode medir os seus encantos." Outra rede: o meu corpo é a outra rede, feita de coração, sangue e emoção. Deixa passar o que a ciência segura. E segura o que a ciência deixa passar. Não mede os encantos do sabiá. Mas fica triste ao ouvi-lo, ao cair da tarde... Isso também é parte da realidade. Sem ser científico.

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